GOTAS DE REFLEXÃO - EVANGELHO DOMINICAL
Ambientação:
Sejam bem-vindos amados irmãos e irmãs! Do evangelho e da primeira leitura emerge a figura do Cristo como pastor e rei, e, portanto, sua realeza, que se estende e se exerce sobre a humanidade. O universo, do qual é ele rei, é constituído pela totalidade dos homens. A 2ª leitura dilata a perspectiva: o universo compreende todas as coisas que serão sujeitas a Deus Pai e são redimidas em relação a Cristo. Tem-se aqui uma visão cósmica da realeza de Cristo. Entoemos cânticos jubilosos ao Senhor!
(coloque o cursor sobre os textos em azul abaixo para ler o trecho da Bíblia)
PRIMEIRA LEITURA (Ez 34,11-12.15-17): - "Vede! Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas e tomar conta delas."
SALMO RESPONSORIAL 22(23): - "O Senhor é o Pastor que me conduz; não me falta coisa alguma!"
SEGUNDA LEITURA (1Cor 15,20-26.28): - "em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda."
EVANGELHO (Mt 25,31-46): - "Quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso."
Homilia do Diácono José da Cruz – NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO – Ano A
"O REI DOS REIS"
O filme era em preto e branco, e o cinema era o saudoso Club Atlético Votorantim, meus olhos brilhavam quando meu pai me dava uns trocados no domingo de páscoa, e me dizia “tome, vá assistir o “Rei dos reis”. O Tarzan e o Zorro, ou o mocinho dos filmes de Cowboy, eram nossos heróis que sempre se saiam bem sobre os bandidos, a gente brincava depois, tentando reproduzir o que tínhamos visto na tela mágica do cinema, e todos queriam ser os heróis vencedores. Então, o Rei dos reis, na certa contava a história de um rei poderoso e vencedor, contudo, o final do filme acabara com o meu entusiasmo, o tal Rei dos Judeus – Jesus de Nazaré – sofrera uma derrota humilhante e vergonhosa, sendo torturado pelos seus algozes até na hora da morte, além do mais nascera pobre em um estábulo, trabalhara com o pai em uma carpintaria, andava a pé e não em fogosos cavalos com sua guarda pessoal como faziam os grandes reis, e o pior, andava com pessoas de baixo nível, ladrões, prostitutas, pecadores, coisa nada recomendável para um rei. E no meu pensar de menino, comparado aos heróis da tela, o filme fora uma decepção.
Não dava nem para brincar de “Rei dos reis” com a minha turma, pois, como cantava Raul Seixas, eu também morria de medo de ser pendurado numa cruz. Era um filme onde, contrariando os demais, a força do mal havia vencido! Todos os anos eu ia assistir, na esperança de que houvesse perdido uma parte do filme, quem sabe a fita não tinha arrebentado, como as vezes ocorria com outros filmes, ocasião em que a platéia soltava uma calorosa vaia, vai ver que faltava um pedaço do filme, e assim eu alimentava a esperança de que Jesus de Nazaré saira-se vitorioso diante dos seus torturadores e poderosos que o haviam condenado.
Minha mãe era muito fervorosa em suas orações e práticas religiosas, um belo dia expus-lhe minha dúvida, se Jesus era ou não um vencedor, e se ele realmente ressuscitara, após aquela morte horrível na cruz, onde afinal havia se enfiado, que ninguém o via. Minha mãe sorriu, disse-me que com o decorrer do tempo eu iria entender, desde que continuasse a ir à igreja, escutar a santa palavra e a receber a eucaristia. Achei que a minha mãe tinha algum segredo sobre Jesus, que não queria me contar.
Comecei a segui-la sem que ela soubesse, um domingo a tarde foi ao hospital Santo Antonio, visitar uma amiga internada, levou duas maçãs, e já no quarto, abraçou e a beijou, dizendo-lhe palavras de conforto e esperança,. Na outra semana pediu a meu pai para entregar ao soldado Ranieri, uma marmita cheia de comida e pedaços de frango, para ele levar para o Chiquinho, que estava preso por bebedeira, e que não tinha mais família. Em outro dia, acolheu em nossa casa, com a permissão do meu pai, um andante (eu morria de medo de andante) ele tinha uma barba grande e estava mau vestido, meu pai lhe cedeu uma calça e uma camisa limpa, um sapato usado para seus pés descalços, ele sentou-se na mesa e almoçou com muito apetite, igual os cachorros famintos que a gente alimentava na calçada.
E em minha última espionagem, notei que ela ficou quase uma semana ajudando a cuidar de uma criança enferma, que vivia com o avô, carregando a menininha pobrezinha uns três dias, prá cima e prá baixo, levando-a na farmácia e no Posto de Atendimento. Percorria as casas rezando o terço nos meses de maio e outubro, e preferia sempre as mais pobres, para alegria das pessoas simples, que saudavam Nossa Senhora das Graças, com muita festa. Meu coração se questionava cada vez mais, onde estava o Rei dos reis, triunfante? Qual a relação desse Reino do Bem, com aquelas atitudes de minha mãe?
Lembro-me que já andava nos meus 14 anos e falava em ir para o seminário, certa tarde o Vico, marido da Nhá Jandira caiu em frente a nossa casa, esfolando o rosto na calçada, sangrando muito, sendo que meu irmão o recolheu para dentro de casa e ela, limpando o ferimento fez um curativo, lavando o rosto ferido daquele homem, e foi quando então uma luz brilhou dentro de mim, assim que ela foi para a cozinha corri atrás “Descobri mãe, descobri onde está o Jesus vencedor do mal!”. Enxugando as mãos no velho avental, ela indagou-me para que falasse logo, pois ainda tinha de preparar a janta para nós. “Ele está escondido em todas essas pessoas que Senhora ajuda, eu andei espionando tudo o que a senhora fez.”
Minha mãe sorriu, e disse-me que era mesmo verdade, que um dia o Padre Antonio explicara para o povo, o que Mateus havia escrito em seu evangelho (nos anos 60 a gente não tinha acesso a Bíblia) que em todas as pessoas que sofriam alguma dor, física ou moral, Jesus estava presente e precisava ser tratado bem, com carinho, amor e ternura. E assim desvendei o mistério de Cristo Rei, o seu reino alicerçado no amor, na justiça, na igualdade entre as pessoas é eterno, e jamais as forças do mal irão prevalecer contra ele.
É este o único critério que o evangelho desse penúltimo domingo do ano litúrgico nos coloca, para entrarmos na comunhão plena com Deus na Vida Eterna, crer na vitória da cruz, no Cristo Ressuscitado, que quer ser amado nos pobres, enfermos, idoso, crianças, encarcerados, prostituídos, nos famintos, e nos que estão nus, porque já perdeu toda sua dignidade. Há algo que nunca contei à minha mãe, e que guardei só para mim: É que na caminhada para o calvário, havia poucas pessoas que acreditavam em seu poder e realeza, Verônica, a que enxugou o seu rosto ferido, era uma delas, quando minha mãe limpou o rosto ferido daquele Homem alcoolizado, que caira em frente a nossa casa, eu me lembrei do filme, desvendando o grande mistério “tive sede e me destes de beber, tive fome e me destes de comer, estava nu e me vestistes, preso e enfermo, e fostes me visitar”.
José da Cruz é Diácono da
Paróquia Nossa
Senhora Consolata – Votorantim – SP
E-mail jotacruz3051@gmail.com
Homilia do Padre Françoá Rodrigues Costa – NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO – Ano A
“O Reinado de Cristo”
Há anos, muitos anos atrás, no Brasil havia reis e rainhas, príncipes e princesas, condes e condessas, duques e duquesas, enfim… era o tempo da monarquia. A atual forma de governo, república democrática, consta de um presidente e um vice. Junto a eles, cumprindo funções próprias para o bem do Brasil, estão os presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal. Há, além disso, 38 ministérios e os mais diversos cargos públicos a nível nacional, estadual e municipal. O Brasil é como uma fantástica máquina que vai funcionando às vezes com engrenagens cilíndricas retas; outras, com as cônicas; outras ainda, com as coroas etc. O que nunca podemos deixar de pensar é na análise de forças. Ainda que é certo que somente uma pessoa com certa educação tecnológica vai me entender, fica claro no entanto a complexidade do sistema, em qualquer caso.
Pois bem, ainda que complexo, o sistema presidencialista parece ser muito mais inteligível para nós do que o monárquico, entre outros motivos porque é o sistema que nós temos atualmente. Não seria, portanto, mais interessante chamar a celebração de hoje “Solenidade de Cristo Presidente” em lugar de “Cristo Rei”?
E, não obstante, chamando-o Cristo Rei ou Cristo Presidente, a Igreja, ao celebrar a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo (que assim se chama), desde o ano 1925, não identifica nunca o poder real de Cristo com um poder temporal. Aquilo que o Senhor Jesus disse a Pilatos é uma sentencia a ter em conta à hora de considerar a festa de hoje: “o meu reino não é deste mundo. Se o meu Reino fosse deste mundo, os meus súditos certamente teriam pelejado para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é deste mundo” (Jo 18,36). O Papa que instituiu a festa de Cristo Rei, Pio XI, também deixava isso bem claro ao afirmar que a realeza de Cristo “é principalmente interna e respeita sobretudo a ordem espiritual” (Carta Encíclica “Quas Primas”, 11-12-1925, nº 12). Contudo, um reinado espiritual não exclui a potestade judiciária, legislativa e executiva do Rei Jesus. Todas as coisas, também as temporais, lhe estão submissas. Segue-se, portanto, que a legitima autonomia das realidades criadas não significa independência dessas mesmas coisas com respeito ao seu Criador, mas que a realidade criada tem leis ínsitas ao seu mesmo ser e que devem ser respeitadas. Estas leis naturais têm a Deus por autor e mostram que tudo lhe está submisso.
É um erro gravíssimo tentar retirar a Deus da sociedade dos homens, pois um mundo sem Deus não é habitável, se estraga e se condena. Não nos esqueçamos de que teremos que prestar contas a Deus da administração que fizemos dos bens que ele nos deu para que os trabalhássemos e os colocássemos a serviço dos outros. Justamente isso é o que nos fala o Evangelho de hoje: dar de comer, dar de beber, praticar a hospitalidade, visitar os enfermos, entre outras obras de misericórdia, tudo isso é uma clara manifestação de que estamos fazendo frutificar os dons que Deus nos concedeu e, consequentemente, de que estamos fazendo efetivo o reinado de Cristo neste mundo.
Tudo é de Deus. Mas ele quis que nós fôssemos seus administradores. Façamos a nossa tarefa, qualquer que seja, com competência, profissionalidade, amor a Deus e para o bem dos irmãos, oferecendo-lhe tudo o que somos e temos. Desta maneira não será difícil fazer que Cristo reine nas nossas inteligências, nas nossas vontades, nas nossas ações, em primeiro lugar; depois, Cristo reinará, através de nós, no nosso trabalho, na nossa família, entre os nossos amigos e conhecidos. Neste sentido, o apostolado é uma clara manifestação de que realmente desejamos que Cristo reine: quem ama a Deus sempre está a procura de que alguém também o ame.
Através de nós, Jesus tem que reinar no Brasil e no mundo, mas, repito, tem que começar em nós. Por exemplo, se queremos que ele reine no nosso trabalho é só começarmos o labor profissional com uma pequena oração feita no coração; depois, teremos que trabalhar bem, com a máxima perfeição humana e cristã; cada momento que nos lembrarmos, ofereceremos a Deus tudo o que está ao nosso redor; finalmente, terminaremos depositando o esforço e o suor da jornada nas mãos do Todo-Poderoso: do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
Pe. Françoá Rodrigues Figueiredo Costa
Comentário Exegético – NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO – Ano A
(Extraído do site Presbíteros - Elaborado pelo Pe. Ignácio, dos padres escolápios)
EPÍSTOLA (Cl 1, 12-20)
INTRODUÇÃO: Paulo está em Roma preso e recebe notícias de Epafras [=simpático, contração de Epafrodito], por ele convertido em Éfeso, à fé cristã e provável fundador da igreja de Colossas (Cl 1, 7 e 4, 12). Colossas era antiga cidade de Frigia na península de Anatólia [hoje Turquia asiática] situada a 18 km de Laodiceia. Durante o século I seu tamanho e importância estavam muito reduzidos, porque Laodiceia foi declarada capital do distrito. Mais tarde entrou em decadência, devido talvez a um terremoto. Com o nome de Konia foi famosa pela aparição medicinal do arcanjo Miguel em Chairotopa numa fonte, de modo que os que se banhassem nela, invocando a Trindade e a Miguel, fossem curados. A carta paulina foi sem dúvida escrita entre os anos 57 a 62. Paulo não tinha visitado a cidade, conforme declara a Filemon. A ocasião da carta é uma série de doutrinas heréticas procedentes dos judeus cristãos, entre elas algumas não muito boas sobre certas ideias que os judaizantes de Colossas, Laodiceia e Hierápolis difundiam com base na moralidade essênica e o gnosticismo e sincretismo gregos. Diversas potestades angélicas tomavam o lugar de Cristo, tanto na criação como na redenção. Contra essas ideias heréticas Paulo reclama o único poder supremo de Cristo, como criador, anterior a sua encarnação e a singular mediação, como redentor. Daí parte o apóstolo para uma série de consequências morais: a união com Cristo é o princípio da vida nova dos cristãos, a família cristã e o espírito apostólico próprio de todo cristão.
AÇÃO DE GRAÇAS: Agradecendo ao Pai que nos fez aptos para a parte da sorte dos santos na luz(12). gratias agentes Patri qui dignos nos fecit in partem sortis sanctorum in lumine. AGRADECENDO: [eucharistountes<2168>= gratias agentes] do verbo eucharisteö cujo significado é estar agradecido, dar graças, ou agradecer. Tratando-se de uma oração, vemos como Jesus, tomando os sete pães e os dois peixes, deu graças antes de reparti-los a seus discípulos (Mt 15, 36). No nosso caso, é melhor traduzir por agradecer. FEZ APTOS [ikanösanti <2427> =dignos fecit] do verbo ikanoö com o significado de fazer apto, equipar com poder suficiente para desempenhar um ofício ou um dever. É um particípio de aoristo que neste caso devemos traduzir pelo perfeito: que nos fez aptos seria a melhor tradução. Capaces é a tradução espanhola, idôneos a RA evangélica, capaci a italiana, fit a inglesa e dignos a Vulgata. Segundo a outra ocasião em que encontramos ikanoö, em 2 Cor 3, 6, Paulo declara que Deus lhe fez ministro capaz de um novo testamento. PARTE [meris<3310>=pars] com significado de parte, porção, percentagem, ou cota; optamos por parte. SORTE [klëros <2819>=sors]; Klëros era um objeto, pedra, casco de cerâmica, ou pedaço de madeira para lançar a sorte; e daí a mesma sorte ou prêmio que se obtém com o lançamento dos objetos antes citados. A consequência desse quinhão do qual formamos parte é que seremos contados entre os SANTOS NA LUZ. Esta expressão é única. Luz metaforicamente implica a essência de Deus, que se mostrou no monte como nuvem de luz (Mt 17, 5); e, como vida humana, Cristo é a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo (Jo 1, 9). Assim, o próprio Jesus exclama, durante as festas dos sukoth ou tabernáculos: eu sou a luz do mundo (Jo 8, 12). Jesus chama a seus discípulos luz do mundo (Mt 5, 14); e como filhos da luz, os compara com os filhos deste mundo, a quem considera mais prudentes na sua geração. Paulo fala aos efésios que antes eram trevas, mas agora são luz no Senhor e, portanto devem andar como filhos da luz (Ef 5, 8). De tudo isso se deduz que Paulo, como parte do grupo dos apóstolos, foi escolhido como luz do mundo (Mt 5,14) e de modo especial do mundo pagão. Paulo usa o plural majestático que logicamente se refere a si mesmo, mas também é válido para os fieis a quem se dirige.
O RESGATE: O qual nos resgatou da autoridade das trevas e transladou para o reinado do Filho de seu amor(13). Qui eripuit nos de potestate tenebrarum et transtulit in regnum Filii dilectionis suae. RESGATAR [errysato <4506>=eripuit] do verbo ryomai, com o significado de resgatar, libertar, como vemos em Mt 27, 42: Confiou em Deus; pois venha livrá-lo agora. AUTORIDADE [exousia<1849>=potestas] DAS TREVAS [skotos<4655>=tenebrae] Autoridade ou poder o que implica domínio. Skotos tanto em latim como em português, trevas é plural. Também em espanhol [tinieblas] embora o significado fundamental é escuridão, falta de luz. Na linguagem metafórica do NT trevas é oposta à luz do Logos: a luz veio ao mundo e os homens amaram mais as trevas do que a luz (Jo 3, 19). Como poder das trevas encontramos no NT três versículos: Lc 22, 53: aos dirigentes judeus, Jesus disse: esta é vossa hora e o poder das trevas. Paulo fala duas vezes em suas cartas: sobre os governadores [kosmokratores] destas trevas (Ef 6, 12) em que não parece indicar poderes supranaturais, mas senhores do mundo; e finalmente, neste versículo, em que aparentemente é o diabo o senhor das trevas, como vemos também em At 26, 18: Paulo narra sua conversão e diz que o Senhor lhe escolhe para enviá-lo aos gentios para abrir os olhos deles para que se convertam das trevas para a luz e da potestade [exousia] de Satanás. Podemos, pois, afirmar que essa autoridade, ou melhor, poder, é o poder diabólico que dominava o mundo pagão através dos diversos ídolos e costumes depravados, que nele exerciam o domínio supremo com a conivência das autoridades romanas. Desse império das trevas fomos resgatados e conduzidos para o reino do filho, o amado de Deus (Mt 3, 17 e 9, 7); na realidade, Filho de seu amor que em termos bíblicos indica o primogênito ou unigênito, como afirma João (1, 14 e 1, 18).
REDENÇÃO: No qual temos a redenção mediante seu sangue, a remissão dos pecados (14).In quo habemus redemptionem remissionem peccatorum. Este versículo é uma clara definição do que nós chamamos de redenção. REDENÇÃO [apolytrösis<629>=redemptio] preço do resgate em geral de um escravo. Seria melhor falar de resgate, palavra que todos entendem; e esse resgate foi pago por Cristo por meio do seu sangue na cruz. Que dívida foi paga? Evidentemente com a REMISSÃO [afesis <859>=remissio] se indica uma dívida que, neste caso, foi contraída pelo pecado dos homens, a começar pelo original de Adão. Pecado [hattah <02403> =amartia=peccatum], em hebraico é o mesmo que dívida mashaah<04859>=debitum como vemos em Mt 6,12 donde o grego ofeilëma <3783>=debitum: Perdoa-nos as nossas dívidas [ofeilëmata] assim como nós perdoamos aos nossos devedores. Assim, pois, com o sangue de Cristo na cruz foram perdoadas as dívidas [os pecados] contraídas pelo homem através da História, desde Adão até o último homem nascido. Nisso consiste essencialmente a redenção, que o grego designa como resgate, pois foi pago um preço por uma dívida.
SOBRE CRISTO: O qual é imagem do Deus invisível, primogênito de toda criatura(15). Qui est imago Dei invisibilis primogenitus omnis creaturae. IMAGEM [eikön<1504>=imago] é também figura, efígie como era a do César na moeda do denário (Mt 22, 20). Porém Jesus, o Cristo, como Filho, era a figura visível do Deus invisível (2Cor 4,4 e Col 1,15) e os cristãos são toda criatura chamados a ser imagem do Filho de Deus (Rm 8, 29),e o varão imagem da glória de Deus (1Cor 11, 7). E sendo Cristo primeiro que é imagem de Deus, ele é considerado PRIMOGÊNITO [prötotokos<4416>=primogenitus] de toda CRIATURA [ktisis <2937>=creatura]. Como afirma Orígenes, ele não é criado, mas de toda a natureza criada é primogênito. Em Rm 8, 29 Paulo afirma que a predestinação é para conformar os bemaventurados à imagem de seu Filho a fim de que Ele seja o primogênito de muitos irmãos.Também é o primogênito dentre os mortos para ter em tudo a primazia (Cl 1, 18). Ktisis pode ser o ato de fundação ou edificação de uma casa, a criatura, e a natureza como criação. Depende do contexto. Aqui, se supõe que seja criatura e não criação.
NELE TUDO FOI FEITO: Porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam senhorios, sejam principados, sejam potestades: todas por meio dele e para ele foram criadas (16). Quia in ipso condita sunt universa in caelis et in terra visibilia et invisibilia sive throni sive dominationes sive principatus sive potestates omnia per ipsum et in ipso creata sunt. Tomando como base a figura de Cristo, Paulo fala dos privilégios do mesmo em relação com Deus, com a criação e com a Igreja. Ele não só é o primogênito, mas nEle foram CRIADAS [ektisthë<2936>=condita] do verbo ktizö, com o significado de fazer habitável um lugar, fundar uma cidade e finalmente criar, originar, dar existência. E ao dizer NELE, isso significa a transcendência como modelo e como fim, motivo e realização de tudo que existe no Universo, que Paulo abrange dizendo coisas celestes e terrestres. Tudo foi criado POR ELE E PARA ELE dirá imediatamente [di autou kai eis auton=per ipsum et in ipso]. Disso deduzimos que Paulo acredita em seres invisíveis como são os anjos e demônios, coisa que no credo afirmamos. E o interesse de Paulo é colocar o Cristo acima de qualquer poder, tanto humano como de outra ordem superior, por isso ele enumera uma série de potestades como tronos, senhorios, principados e potestades. Também estes domínios e autoridades podem significar as diversas características dos domínios angélicos. Na realidade, o importante é saber que Cristo é tudo em todos (Cl 3, 11).
ANTERIOR: E ele é antes de todas as coisas e todas nele subsistem (18). Et ipse est ante omnes et omnia in ipso constant. Ainda não existiam os dogmas cristológicos, que firmaram a fé em Cristo como Deus encarnado; mas numa linguagem simbólica e modélica Paulo nos diz que ele existia antes de todas as coisas, exatamente como o próprio Jesus afirmou aos judeus: antes que Abraão existisse, eu sou (Jo 8, 58). Isto é o que Paulo diz quando afirma que ele é anterior a tudo. SUBSISTEM [synestëken <4921> =constant] do verbo synistemi, unir, integrar, compor, juntar, unificar, agregar. Geralmente a tradução é subsistir, ou seja, persistem, permanecem ou tem consistência. Significa que tudo depende dEle, de modo que sem Ele, não existiriam.
CABEÇA: E ele é a cabeça do corpo da Igreja, o qual é princípio, primogênito dentre os mortos para ele se tornar em tudo o primeiro (18). Et ipse est caput corporis ecclesiae qui est principium primogenitus ex mortuis ut sit in omnibus ipse primatum tenens. CABEÇA E PRIMOGÊNITO: [kefalë<2776>=caput] do CORPO [söma <4983> =corpus] da Igreja. É a base do chamado corpo místico de Cristo que Paulo descreve de modo mais detalhado em Rm 12, 4-5 e 1 Cor 12, 12-27. Além do que os santos padres dizem sobre este mistério, hoje com o DNA podemos dizer que todo fiel, unido a Cristo pelo batismo tem o DNA de Cristo, assim como as células de um corpo têm o mesmo DNA que as distingue de um outro e as une ao único e próprio como partes de um todo. Pois todos somos conformes à imagem do Filho (Rm 8, 9). É a fé e a caridade com a seiva do Espírito que nos une e conforma com o Cristo, Filho de um único Pai, para termos um só Pai, um só Senhor e um mesmo Espírito, assim como temos uma só fé e um só batismo (1 Cor 8, 6 e Ef 4, 6). E seguindo o esquema do DNA, Cristo é como o zigoto inicial, o princípio do novo ser, e logicamente sendo o primeiro a ressuscitar se torna também primogênito dentre os mortos e como primeiro em tudo.
PLENITUDE: Porque nele pareceu bem habitar toda a plenitude(19). Quia in ipso conplacuit omnem plenitudinem habitare. PLENITUDE [plëroma<4138>=plenitudo] é a carga com a qual um barco está cheio, que além do frete incluia marujos, velas, etc. Para Paulo o kosmos é cheio de Deus (1Cor 10, 26) e, conforme o uso da época, o designa com o termo de pléroma. Derivado de plëres, completo ou repleto, foi usado pelos gnósticos, significando a totalidade de tudo que era considerado divino e dessa substância derivavam-se os diversos seres intermédios ou eons. Usada essa palavra 12 vezes por Paulo, em suas epístolas, significa o conjunto de todo o Universo, criado por Deus e submetido à soberania de Cristo. Este é o total cumprimento das antigas profecias (Rm 11, 25) e a plenitude dos tempos (Ef 1, 10), o cumprimento inteiro da vontade do Pai (Gl 5, 14) que opera o conjunto total das bênçãos, como fez por meio de Paulo (Rm 15, 19). Na cabeça deste kosmos, ou pléroma de Deus, Paulo coloca Cristo, recapitulando em si todo o céu e a terra (Ef 1, 10) Pois em Cristo habita ou está incorporado todo esse pléroma de Deus, como vemos neste versículo. E é por essa plenitude divina que nEle se encontra, que pode realizar a pacificação, como vemos no versículo seguinte.
A RECONCILIAÇÃO: E por ele reconciliar todas as coisas nele, fazendo a paz por meio do sangue da sua cruz por ele, quer as sobre a terra quer as nos céus (20). Et per eum reconciliare omnia in ipsum pacificans per sanguinem crucis eius sive quae in terris sive quae in caelis sunt. Como pléroma da divindade, a Cristo pertence a autoridade e poder de reconciliar todas as criaturas, inimigas de Deus desde o primeiro pecado. NEle e por meio dEle: Sendo que essa paz, foi conseguida na cruz, pelo sangue derramado como sacrifício. Nesse sacrifício pelo pecado, o Universo inteiro [quer o terrestre, quer o celeste] foi reconciliado com Deus.
EVANGELHO ( Lc 23, 35-12) - CRISTO REI: DO ALTO DA CRUZ, REINARÁS
INTRODUÇÃO: A agonia na cruz é o momento mais sublime da vida de Jesus como homem. É o seu sacrifício, que não só é acompanhado duma intensa dor, mas também duma profunda humilhação, que consiste em se desprender de todo contato com sua divindade e se mostrar na hora da morte como um simples mortal, um homem sofrido e humilhado, como um escravo castigado e não como um senhor dominador. Por isso, Deus se aproxima muito mais de todos nós na cruz infamante, assumindo toda nossa fragilidade e adotando o mais débil e frágil da natureza humana, num momento em que as forças e o sofrimento igualam todos os homens. E, não obstante, é nesse momento de fragilidade e abatimento em que Jesus morria, que o título dizia a verdade: Ele era por causa de sua cruz o rei dos judeus. Aceitá-lo como tal nesse momento paradoxal de sua vida, exige maior fé do que, vendo-o ressuscitado, confessar como Tomé: Meu Senhor e meu Deus! Esta foi a fé do bom ladrão, como vulgarmente falamos dele. A fé deste converso é um chamado para que nós vejamos, no Jesus da cruz, o verdadeiro Cristo, modelo de nossas vidas, sem ter que recorrer ao Jesus ressuscitado na Páscoa. A SOLENIDADE: No dia 11 de março de 1925 esta solenidade foi instaurada pelo papa Pio XI, querendo motivar os católicos a reconhecer, em público, que o mandatário da Igreja [e Igreja somos cada um de nós] é Cristo Rei. No dia 11 de dezembro desse ano Pio XI deu a conhecer uma carta encíclica, explicando as razões dessa sua eleição. Entre outras coisas, afirma: Podemos chamar de Rei a Jesus Cristo no sentido metafórico por sua Excelência que o exalta sobre todas as coisas criadas. Porém Ele reina nas inteligências dos homens porque é a Verdade da qual todos os homens necessitam beber e receber obedientemente. Reina sobre todas as vontades porque nele a Vontade está submetida à vontade divina e, também porque, com suas inspirações, influi em nossa livre vontade e a eleva a nobilíssimos propósitos. Finalmente é REI DOS CORAÇÕES porque com sua supereminente caridade e com sua mansidão e benignidade se faz querer pelos homens de modo que ninguém tenha sido nem seja nunca tão amado como Cristo Jesus. Mas também em sentido estrito o título de Rei pertence a Cristo porque ele recebeu do Pai a potestade, a honra e o reino (Ef 1,20-21); pois sendo Verbo de Deus, em substância igual ao Pai, possui, como o Pai, o mesmo império supremo e absoluto sobre todas as criaturas. O Papa fala das três potestades atribuídas aos reis [executiva, legislativa e judicial] e que em Cristo são eminentes, pois abrangem toda a terra e todos os homens, e são prioritárias sobre qualquer outra potestade ou soberania. Já que como afirma Paulo Omnis potestas a Deo (Rm 13,1): todo poder vem de Deus. O Papa termina, dizendo a razão pela qual instituiu a festa: não existe melhor meio para a instrução do povo cristão nas coisas da fé do que as festas anuais, muito mais eficazes que qualquer ensino ou magistério eclesiástico. Como causas negativas contrárias, o Papa fala da peste dos tempos modernos que é o Laicismo querendo substituir a religião de Cristo por uma religião natural, com certos sentimentos puramente humanos. É o que afirma no seu recente livro, Maçonaria em decadência, José Antônio Ullate: A raiz filosófica da maçonaria é o naturalismo, quer seja panteísta ou deísta: a eleição está pela razão natural, contra a fé sobrenatural. A maçonaria como instituição está em decadência, mas a maçonaria como doutrina adquire uma difusão quase universal; ou seja, a influência do naturalismo filosófico e o laicismo político.
OS ASSISTENTES: E estava a multidão olhando. Também os chefes junto com eles mofavam dele, dizendo: Outros salvou; salve-se a si mesmo se ele próprio é o Ungido, o escolhido de (o) Deus (35). Et stabat populus expectans et deridebant illum principes cum eis dicentes alios salvos fecit se salvum faciat si hic est Christus Dei electus. O POVO: Lucas fala dos que estavam presentes observando, enquanto Mateus e Marcos falam dos que passavam por lá. Ambas as coisas podem ser verdadeiras. Com isso se confirma que não foi o povo, o responsável, pelo menos principal, da morte de Cristo. Embora também o povo se uniu às mofas dos chefes, que Mateus e Marcos declaram ser os chefes sacerdotais [oi archiereis=summi sacerdotes]. AS ZOMBARIAS: Para Lucas, o motivo eram as curas produzidas por Jesus. Para Mateus e Marcos, a causa da mofa era a reivindicação de Jesus de reconstruir o templo em três dias após a destruição do mesmo. Também ambos os sinóticos coincidem em que o gesto principal era o balancear da cabeça, num sinal de desaprovação. OS DIRIGENTES: Porém serão os dirigentes religiosos do povo, aqueles que Jesus definia como chefes sacerdotais, anciãos e escribas (Lc 9, 22) os que neste momento, como chefes [archontes](35) zombavam dele e riam dizendo: Ele que salvou outros que se salve a si mesmo se é o Messias [Cristo ou Ungido] de Deus, o seu Eleito. Aparentemente a cruz era a destruição de um inimigo, de um homem; mas na realidade tratava-se da ressurreição de um novo Deus, e de um Senhor que era, precisamente por isso, tanto Kyrios como Chrestós [Deus e Ungido] (At 2, 36). A mofa dos magistrados dá pé para saber que Jesus morria na cruz por se ter declarado Messias e Eleito de Deus, segundo os salmos: Fui eu que consagrei o meu Rei sobre Sião [Jerusalém], minha montanha sagrada (Sl 2, 6). Assim, os outros dois sinóticos, acrescentam o desça da cruz como objetivo de salvação. Porém esse homem, destroçado pelo sofrimento na cruz, era verdadeiramente o Ungido, transformado em Redentor, segundo Isaías 59, 20: Virá um redentor em Sião aos que se converterem da sua rebelião em Jacob. Jesus, em sua resposta à petição do bom ladrão, não nega seu reinado e por isso lhe declara que estará com ele no paraíso onde seu reino será total e definitivo.
OS SOLDADOS: Menosprezavam-no, pois, também os soldados, aproximando-se e oferecendo-lhe vinagre (36) e dizendo: se tu és o rei dos judeus salva a ti mesmo (37). Inludebant autem ei et milites accedentes et acetum offerentes illi. SOLDADOS: Lucas emprega duas palavras diferentes. Uma para soldados romanos Stratiotes <4757>e outra, Strateuoma para guardas e policiais<4753>. O estratiotes é usado neste caso e o strateuoma no caso de Herodes (23, 11) e dos que perguntam a João sobre seus deveres (3, 14). Neste caso, eram soldados romanos os que custodiavam os crucificados. Como tropas auxiliares, muitos deles eram samaritanos, inimigos natos dos judeus. Daí que a burla fosse natural, especialmente por ter o réu o título de rei dos judeus. Um detalhe para ver até que ponto os evangelistas contam a verdade: Na burla dos chefes judeus vemos que eles pedem que Jesus demonstre sua missão: Se és o Cristo, intenção que não aparece entre os soldados. E os chefes sacerdotais ainda pedirão como supremo sinal o descendimento da cruz para crer no envio de Jesus como rei de Israel. VINAGRE: O termo oxos [acetum em latim] não pode ser traduzido por vinagre simplesmente; mas na época significava o que hoje chamamos de vinho seco, sendo oinos o termo que indicava vinho doce. Assim se entende a frase latina acre acetum [vinho azedo] ou, como outros traduzem, vinagre azedo, que não tem muito sentido, pois o vinagre sempre é azedo. O oxos, pois, era o vinho que tomavam por costume os soldados romanos. A tradução da bíblia KJ é vinegar [vinagre]. João confirma com sua narração o que acabamos de dizer: Estava lá um vaso cheio de vinho [oxos grego e acetum latino] (19, 29). Outros, afirmam que era a bebida chamada posca, também utilizada pelos soldados, e que consistia numa mistura de vinho azedo, ou vinagre, com água. Geralmente o vinho de baixo teor alcoólico facilmente vira vinagre, especialmente em climas cálidos. Lucas, aparentemente considera este ato como parte da burla dos soldados. Mateus fala de uma esponja empapada em oxos (27, 48), coisa que repete Marcos (15, 36), embora pouco antes tinha escrito que deram-lhe vinho com mirra, que Ele não tomou (15,23), porque este parece ser um ato costumeiro dos que assistiam aos condenados para diminuir as dores, como se fosse um calmante. João fala também dessa esponja. (19, 29) que tomou ou provou, logo dizendo está cumprido. Sem dúvida que se refere ao salmo 68, 22 segundo a Setenta ou 69, 22 no hebraico. Para se cumprir o dito pelo profeta: quando tinha sede deram-me a beber vinagre [chomets hebraico]. Lucas diz que se aproximaram os soldados, quer dizer que na custódia estavam um tanto longe da cruz, não tão longe como os familiares e amigos. REI DOS JUDEUS: O motivo do caçoamento dos soldados era ver um rei condenado sem que nenhum dos seus súditos o tivesse defendido. Como tal rei, ele devia se defender, e, a melhor forma, era descer da cruz nesse momento crucial, e lutar. É muito provável que os soldados fossem samaritanos e, portanto entendiam perfeitamente as mofas dos chefes judeus assim somando-se as mesmas (versículo 35). A razão desta burla está no versículo seguinte.
O TÍTULO: Já que também uma epígrafe estava escrita sobre Ele, em letras gregas e romanas e hebraicas: Este é o Rei dos judeus (38). Erat autem et superscriptio inscripta super illum litteris graecis et latinis et hebraicis hic est rex Iudaeorum. : Os réus na cruz tinham um capuz na cabeça [obnubilato capite que diz Cícero] e sobre a cruz, pendurado, estava o nome e o motivo da condenação. Era o elogium romano. O título de Jesus estava escrito em três línguas: hebraico, grego e latim. O título mais comprido, talvez o autêntico, é o de João: Jesus, o Nazareno [Nazoraios], o rei dos judeus. Em latim, Iesus Nazarenus Rex Iudeorum. Daí as iniciais INRI tão em uso nas imagens do crucificado. João é o único que usa o sobrenome Nazoraios, pois Mateus e Marcos usam unicamente o nome Jesus e Lucas se contenta com Rei dos judeus. A palavra Nazoraios nada tem a ver com Nezer, Nazir ou Nazireu aquele que se consagra a Deus e por isso deixa o cabelo crescer e não bebe bebidas alcoólicas, segundo os estatutos do Nazir ou consagrado em Nm 6,1 +. Na tabuleta encontrada como a original da cruz, o Nazareno em hebraico é Nzri [naziri(?)]segundo a reconstrução de Marini. Mas qual era o verdadeiro sobrenome de Jesus? Nazaraios ou Nazareno? É o demônio que o Chama de Nazareno (Mc 1, 24); também assim o chama a criada que acusa Pedro (14, 67) e o anjo no sepulcro (16, 6). Mas será Nazoraios em Mc 10, 34. e parece que este evangelista usa uma retradução do latim em que o adjetivo toponímico usa o nus como terminação: palestinus , jerosolimitanus, etc.. Lc 4, 34 é uma cópia fiel de Marcos 1, 24. Porém em todos os outros casos dos demais evangelistas o uso de Nazoraios é total e, portanto esta devia ser a palavra correta. Jesus recebe um sobrenome que não é o patronímico comum entre os judeus, mas um toponímico como é o caso de Maria Madalena ou Simão de Cirene. Jesus de Nazaré seria o nome oficial do réu na cruz. REI DOS JUDEUS: Esta era a razão, segundo Pilatos, pela qual foi condenado Jesus. O crime de lesa majestade era suficiente para o castigo máximo, que no tempo era a cruz. Esse delito era o que tinha contemplado Pilatos para poder aplicar a lei, segundo narra João: Todo aquele que se faz rei opõe-se a César (19, 12). E como os gritos dos assistentes pedissem a cruz, Pilatos deve perguntar: Crucificarei o vosso Rei? (19, 15). E, na opção dos chefes dos sacerdotes de não ter mais rei que o César, Pilatos dá a ordem: Ibis in crucem (irás para a cruz). A condena, da parte dos judeus, era uma blasfêmia: Ouvimos a blasfêmia, que vos parece? E todos julgaram-no réu de morte (Mc 14, 63). Era a condena judaica, a verdadeira, segundo João: Nós temos uma Lei e conforme essa Lei, Ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus (Jo 19, 7). Porém, da parte romana era necessário um delito civil, tal qual diziam os acusadores: Encontramos este homem subvertendo nossa nação, impedindo que se paguem os impostos a César e pretendendo ser Ungido-Rei (Lc 23, 2). Pilatos, segundo o costume romano ditou Sententiam, ex autoritate principis não baseada no caráter arbitral ou num ato restrito do cidadão, mas como Praetor, magistrado, presidindo o processo da cadeira curul. A cadeira curul [sella curulis] era o assento sobre o qual os magistrados que possuíam Imperium [máxima potestade, soberania e comando que era a personificação, no magistrado, da supremacia do Estado], tinham direito a se assentar. Estes magistrados incluíam o dictator, o magister equitum, o consul, o praetor e o aedilis curulis. A cadeira curul estava habitualmente construída de marfim, com pernas curvas formando um amplo X sem respaldo e com braços baixos. Podendo ser dobrada facilmente e assim ser transportada, especialmente pelos generais no caso de guerra. Pensemos também que o juízo de Jesus foi feito no Praetorium, a tenda do Imperator, o comandante máximo do exército que representava a Majestas Populi Romani. Os detentores de imperium tinham o poder de executar ordens e, para simbolizá-lo, eram escoltados por lictores com bastões enfeitados com fasces (feixes) de varas com um machado no meio, indicando a potestas de castigo e morte. À parte do Imperium existia a Potestas um poder derivado como consequência de uma delegação total ou parcial desse Imperium, embora a potestas era também o poder daquele que em si mesmo representava o Imperium. Precisamente o Proetor era o delegado da suprema autoridade, Imperium, nas províncias até o ano 42 em que foi chamada de Procurator. O imperium inclui todas as atribuições da potestas e mais: o direito de tomar os auspícios fora de Roma, o direito de organizar e comandar o exército; a jurisdição (poder de dizer o direito), repartida, paulatinamente, entre os magistrados; o direito de exercer coerção (coercitio), consistente em deter o cidadão e obrigá-lo a comparecer perante a autoridade; o direito de convocar o povo fora de Roma, nos comícios centuriados. A potestas, por sua vez, compreende: o direito de tomar os auspícios dentro da cidade; publicar os editos (jus edicendi); impor multas (jus multae dictionis); direito de convocar o povo dentro da cidade, para lhe dirigir a palavra e para fazê-lo votar; direito de convocar e de presidir o Senado (Senatum vocare), determinar que este aprecie um caso determinado (referre ad senatum) e que delibere e vote (cum patribus agere). Quando Paulo fala de Potestas et Imperium este sempre se refere ao Imperium Domini [império do Senhor arché= principium] ou seja, de Deus e a potestas [exousia= potestas]. Finalmente, vemos como os judeus apelam ao crime de MAJESTAS LAESA, ou Perduellio. Expliquemos os termos: A palavra Majestas significava a dignidade do povo romano. No período republicano, o termo Majestas laesa ou minuta era aplicado aos casos em que um general traía seu exército, ou capitulava diante do inimigo, em que como mando excitava uma sedição e em geral sua má conduta na administração que prejudicava a majestade do estado. As Leis das XII Tábuas punia com morte quem agitasse um inimigo contra Roma ou entregasse um cidadão romano ao inimigo. Alguns destes delitos foram enumerados na Lei Julia, modificada com o tempo pelas Senatus Consulta e Constituições Imperiais. Nos primeiros tempos da República, um ato injurioso contra o estado ou a paz, recebia o nome de Perduellio e o ofensor era julgado publicamente [populi judicio] e, se convicto, executado. A palavra parece que significava inimigo e assim, essa ofensa era equivalente a fazer guerra contra a república. O nome se transformou em lex de majestate nos tempos de Júlio César [daí o nome de lex Julia] e Augusto. Durante o Império, o termo Majestas aplicava-se à pessoa do César reinante e assim temos a frase Majestas Augusta, do mesmo modo que era aplicável aos magistrados da República como cônsules e pretores. No tempo de Tibério a ofensa ou delito de Lesa Majestade estendeu-se a atos e palavras desrespeitosas contra o Príncipe. Destruir ou vilipendiar uma estátua, consagrada ao César, era considerado crime de Lesa Majestade. Ulpiano [século II] afirma que o crime de Lesa Majestade é próximo ao de sacrilégio. O Crime de Lesa Majestade é aquele que é cometido contra o povo romano e contra a sua segurança. A falsificação da moeda entrava também dentro desse crime de Estado. Assim compreendemos que os cristãos que não podiam nem adorar nem venerar as estátuas do Imperador fossem considerados como réus de sacrilégio contra a Majestas e, portanto sujeitos do crime de Laesae Majestatis, ou como escreveu Tácito, convictos de ódio contra o gênero humano. Os cristãos morriam por não ter mais rei que Cristo à semelhança dos cristeros do México e de muitos mártires da guerra civil na Espanha, que morriam gritando: Viva Cristo Rei! Concede-me – orava diariamente o cristero mexicano- que meu último grito na terra e meu primeiro cântico no céu seja: Viva Cristo Rei! Porém, em nosso caso, o de Jesus, temos o delito de convocar uma sedição, ou revolta armada, ou ajudar os inimigos e armá-los contra os soldados romanos. Não é esta a acusação dos dirigentes judeus contra Jesus? (encontramos este homem, subvertendo nossa nação, impedindo que se paguem os impostos a César e pretendendo ser Rei). E não podemos esquecer que estamos nos tempos de Tibério que endureceu os termos de Laesa Majestas. A mesma alternativa de Barrabás confirma a nossa tese: ele era um subversivo [um terrorista] que, numa sedição ou revolta, tinha matado provavelmente algum soldado romano e seus cúmplices seriam os dois lëstai que no meio dessa sedição [en te stasei] tinham cometido um homicídio (Mc 15,7). Se Marcos (15, 27) e Mateus (27, 38) os chamam de ladrões [lëstai] e João nada diz com respeito aos seus crimes, Lucas diz deles que eram kakourgoi, ou malfeitores. É bom observar que a palavra lëstes, em grego significa ladrão violento [robber] a diferença de kleptes que é um vulgar ladrãonzinho [thief]. Por isso lëstes deve ser traduzido por bandido, com mais propriedade do que ladrão. Essa é a tradução que dão do delito de Barrabás em Jo 18, 40, como bandido, embora o latim use o latro [ladrão vulgar] inaplicável para um sedicioso (Mc 15, 7). Como nota, pensemos que Jesus nada respondia diante das autoridades civis. Suas palavras podiam ser mal interpretadas tanto pelo juiz, quanto pelos ouvintes. A melhor defesa era o silêncio. As únicas palavras de Jesus foram: Não terias poder algum sobre mim [potestatem adversus me] se não to tivesse dado Deus (Jo 19, 11). Com isso, Jesus diz a Pilatos que a autoridade dEle [de Jesus] era superior à do juiz nesse momento, que era o pretor romano. Indiretamente Jesus se declara superior ao Imperium. Nessa circunstância, Deus quer que o pretor julgue e condene quem não poderia ser nem julgado nem condenado por uma autoridade humana. E só como testemunha da Verdade Ele quer ser julgado, pois foi para isso que veio ao mundo (Jo 18, 17). Esse é seu reino. E como testemunha da verdade muitos o condenam.
OS KAKOURGOS: E um dos malfeitores pendurados blasfemava dele dizendo: Se tu és o Ungido (messias-rei), salva a ti mesmo e a nós (39). Respondendo, porém, o outro lhe reprovava, dizendo: Nem temes tu a(o) Deus já que estás sob a mesma condena? (40). Unus autem de his qui pendebant latronibus blasphemabat eum dicens si tu es Christus salvum fac temet ipsum et nos Respondens autem alter increpabat illum dicens neque tu times Deum quod in eadem damnatione es. Que tipo de malfeitores [tradução da palavra kakourgos] eram os dois crucificados? Em parte já temos respondido essa pergunta no parágrafo anterior. Mas vejamos mais sobre isto. Lucas nada diz, mas emprega uma palavra que somente ele usa e que unicamente fora dos evangelhos a encontramos em 2 Tm 2, 7, quando Paulo declara seus sofrimentos, entre os quais enumera os perigos dos kakourgoi que podemos assimilar a Lëstoi [salteadores] ou seja, os que assaltavam nos caminhos (Lc 10, 30) e que tinham como moradas, covas por viverem fora da lei (19, 46.): Era a vida que os subversivos da época deviam viver para se subtrair da justiça que os perseguia com espadas e porretes (Mt 26, 55). Era o antigo terrorismo que hoje infelizmente conhecemos tão bem. Dessa ralé era Barrabás (Jo 18, 40), supostamente chefe de uma rebelião (Mc 15, 7) e salteador (Jo 18, 40). Por isso, Pilatos o compara com Jesus a quem os chefes locais acusam de subversivo [kakopoiós] (Jo 18, 30 e Lc 23, 14). É uma boa sugestão pensar que há indícios de que os dois malfeitores eram cúmplices de Barrabás, porque os romanos crucificavam os subversivos que recorriam a práticas terroristas. O simples assaltante era levado, como outros pequenos malfeitores, às galeras ou às minas. Caso os dois malfeitores fossem subversivos ou zelotas, compreende-se melhor a acusação dos chefes dos sacerdotes perante Pilatos ao afirmar: Se este não fosse malfeitor [kakopoios=fazedor de mal igual a kakourgos= operador do mal] não to entregaríamos (Jo 18, 30). O crime de Jesus era a subversão: Se tornar rei dos judeus, opondo-se ao César (Jo 19, 12). Entre Jesus e a conduta prévia dos dois malfeitores, existia uma correspondência que um zelota de boa vontade entendia perfeitamente do ponto de vista religioso. Daí a repreensão deste último a seu companheiro. KRIMA: A palavra significa tanto julgamento como pena, devida a uma condenação, muitas vezes com ela identificada. A tradução mais divulgada é que ele, o outro kakourgos, encontrava-se na cruz, cumprindo uma condenação. Uma delas é a que diz que, na cruz, estava sob a mesma condenação que Jesus. Por que, pois, repreendê-lo? Podemos deduzir isso também da Vulgata [in eadem damnatione] era pedir respeito para quem sofria como companheiro e que não merecia o desrespeito, que era um pecado segundo as leis mosaicas. Esta é a impressão dada pela tradução da RA portuguesa: estando sob igual sentença. A outra é que ele, o malfeitor que blasfemava, estava dentro da própria pena que o condenava, sem referência a Jesus. Esse castigo era justo e definitivo, e a hora era a de temer pelo juízo de Deus, não a de se mofar de outros. Eis a tradução espanhola: Nem temes a Deus tu que estás no mesmo [próprio] suplício? Estando já sofrendo a condenação, era a hora do arrependimento pelos crimes cometidos, necessário para ser recebido benignamente pela justiça divina. Esta segunda versão vem avaliada pelo versículo seguinte.
ESTE NENHUM MAL TEM FEITO: Já que nós, portanto, com justiça, recebemos as consequências merecidas dos atos praticados; porém este nada de errado realizou (41). Et nos quidem iuste nam digna factis recipimus hic vero nihil mali gessit. O bom malfeitor [bom pécheur, que diria Peguy] reconhece o castigo sobre eles como justo. Mas também confessa que o homem a seu lado nada fez contrário às leis e que era inocente. Quem melhor do que um cúmplice ou um entendido na matéria para defender um inocente? O acusado, Jesus, era inocente, embora estivesse cumprindo o mesmo castigo que os dois culpados. Em que momento das aproximadamente três horas de agonia na cruz, ele confessou seu pecado e pediu para ser socorrido? Nada podemos dizer a respeito. Mas sabemos por experiência que os homens só pensam em Deus quando toda ajuda humana está perdida.
LEMBRA-TE DE MIM: E dizia a Jesus: lembra-te de mim, Senhor, quando chegares em teu reino (42). Et dicebat ad Iesum Domine memento mei cum veneris in regnum tuum. Uma vez confessados e aceitos seus crimes, que é o primeiro passo do arrependimento, ele se dirige a Jesus dizendo: Senhor [Kyrie], lembra-te de mim quando chegares em teu reino. A palavra Kyrie tem um significado transcendente como é o de quem se dirige a Deus; mas pode ter o alcance de apelar para alguém de certa autoridade. O verbo vir está em aoristo subjuntivo, tendo como significado um condicional: se algum dia vieres como rei. É uma frase difícil de entender: Como podia o malfeitor esperar coisa boa, um prêmio, de um condenado às mais humilhante das penas, no meio de insultos que transformavam seu reinado no mais espantoso dos ridículos? Só a graça de Deus que fortalece a debilidade (2 Cor 12, 10) é a resposta a essa petição. Sem dúvida que se interpretamos a palavra kakourgos por revoltoso, um zelota [embora a palavra foi cunhada mais tarde], como seria o nosso protagonista, estaria a par dos acontecimentos e especialmente dos fatos sobrenaturais de Jesus e de sua entrada triunfal pouco antes em Jerusalém. Tudo isso tinha um significado transcendente, que o nosso kakourgos não podia esquecer. É possível que a conduta tão singular de Jesus na cruz e os fenômenos que acompanharam a crucifixão (trevas, terremoto e outras coisas como testemunhou também o centurião [Lc 23, 44 e Mt 27, 54]), influíssem também neste raciocínio, do qual o centurião romano também participou: Certamente, este homem era um justo (Lc 23, 47) ou como escreve Mateus: Em verdade, filho de Deus era este (Mt 27, 54). A fé sempre é dada quando a pessoa está disposta a distinguir os sinais dos tempos (Mt 16, 3).
A PROMESSA: Então lhe disse Jesus: Certamente te digo: hoje comigo estarás no paraíso (43). Et dixit illi Iesus amen dico tibi hodie mecum eris in paradiso. Jesus afirma rotundamente [amém] que nesse mesmo dia o malfeitor que estava junto de Jesus como condenado, estaria com ele como perdoado. Vamos ver o significado, sempre escuro, de Paradeisos [paraíso]. É uma palavra de origem oriental de onde se origina o hebraico Pardes. É parte do Hades que os judeus pensavam ser a mansão das almas dos homens piedosos esperando a ressurreição. Mas outros entendem que designa um paraíso celestial, à semelhança do inicial do Gênesis. Vamos estudar isto com maior detalhe. Vamos distinguir entre Seio de Abraão, Éden e Paraíso. SEIO DE ABRAÃO: A palavra que se traduz por seio é Kolpos [seio, regaço] próprio dos homens assim como koilia [cavidade, ventre] é próprio das mulheres. O Reino é semelhante a um banquete. Nestes, os convivas reclinavam-se ao modo romano e por isso o discípulo amado se reclinava no seio de Jesus (Jo 13, 23). O mesmo evangelista usa imediatamente a palavra Stethos [peito] em 13, 25 e em 21, 20. Daí que no relato de Lucas sobre Lázaro, o pobre, este fosse levado pelos anjos ao seio de Abraão (16, 22) onde foi visto pelo rico epulário nos seios (sic) de Abraão que a Vulgata e as línguas modernas reduzem ao singular: no seio dele. Explicávamos, em recente evangelho, como a palavra kolpos pode também designar baia ou remanso. (ver comentário do dia 30 de setembro, XXVI do Tempo Comum). Claramente temos aqui uma reminiscência do banquete que Jesus afirmava era a alegria e gozo do Reino previsto no Antigo Testamento. Em João, sabemos que o Unigênito que estava no seio do Pai era quem o revelaria a nós. Como comentávamos em nossa exegese sobre Lucas, no XXII Domingo deste ano sobre Sheol, Gehena e Seio de Abraão, o banquete do rico foi assumido por Lázaro como banquete do além eterno. Porém, com Jesus não era a companhia de Abraão que representava o conjunto dos justos, dos amados de Deus, mas se tornava em Paraíso, o lugar feliz da companhia de Deus, perdido pelo pecado, mas agora recuperado pela morte sacrifical de Jesus. Que significava, pois, paraíso nos lábios de Jesus? Primeiro explicaremos Éden. ÉDEN: Derivada do acadiano edinu que tem origem no sumério éden significando planície ou estepe. O topônimo bit adini designa a região dos dois lados do Eufrates. Foi indiretamente ligada à palavra hebraica ádan <0527> [com ayim] que significa desfrutar, ter prazer bem [diferente de Adam<0120>, homem ou nome próprio, com aleph]. A LXX parece que tomou como raiz a hebraica e, portanto traduziu o gan be-eden [jardim em Éden] por paraíso em Éden [Paradeisos em Éden], que a vulgata traduz por paradisus voluptatis [paraíso do prazer]. A tradução da vulgata não é tão ilógica, pois em hebraico as três consoantes de YDN são idênticos para Éden [nome próprio de uma região] e para adan [prazenteiro]. Daí que gan é paraíso e Éden é um nome próprio no hebraico e na LXX; e um adjetivo na Vulgata, como vemos em Gn 2, 15 e 3, 23 que a Vulgata traduz o gan Éden por paradisus voluptatis. Unicamente a LXX traduz por paradeisos tes tryfés (da delicadeza ou do prazer) o versículo 3, 23 [hebraico gan-eden e não gan be-den] em que Adam foi expulso do jardim do Éden para a terra de onde tinha sido tomado. No Gênesis hebraico, parece que Éden é uma região geográfica onde se situava o jardim, propriedade de Deus, que parece estava na confluência ou foz dos rios Tigre e Eufrates no Golfo Pérsico, em que agora encontramos Basorá, a não ser que entendamos essa região como situada no terceiro céu, lugar do palácio divino. Éden é um símbolo de grande fertilidade em Isaías 51, 3, Ezequiel 36, 35 e Joel 2-3. Daí que em Isaías Jardim do Éden é paralelo a Jardim do Senhor e em Ezequiel Jardim de Deus, para significar mais tarde, não um lugar geográfico, mas um estado de comunhão perfeita com Deus. Em Joel lemos como, após a passagem dos gafanhotos, a terra que era como um jardim de Éden [gan eden, paradeiso tryfés, hortus voluptatis em hebraico, grego e latim] ficou como um deserto desolado. Amós fala da casa do prazer [beate éden, domus voluptatis]. No período intertestamentário só temos um caso em Sirac: a generosidade [charis] é como um paraíso [paradeisos] de bênçãos [en eulogiais], que repetirá no versículo 27, só que neste caso será o temor de Deus a fonte das bênçãos. O paraíso de Deus se identificará com o lugar onde os justos ficavam esperando a ressurreição no meio do seio de Abraão como vemos em Lc 13, 28 [meso tou paradeisou tou Theou no meio do paraíso de Deus]. Mas vejamos a palavra Paraíso tanto no grego como no hebraico. O PARAÍSO: Existe uma palavra derivada do avéstico [antiga língua do norte da Pérsia] pairidaeza [= cercado circular, aplicado aos jardins reais] que deu origem ao grego paradeisos e ao latim paradisus. A) No AT era o lugar onde Deus colocou o primeiro homem para que o trabalhasse e do qual o jogou fora após o pecado. Já temos visto que a vulgata traduziu os textos de modo a ser identificado com jardim de delícias. Segundo os comentários dos modernos judeus, a palavra Paraíso é tradução do pardes hebraico, que significa parque real, jardim. É a tradução do gan [jardim fechado, ou cercado por uma sebe ou muro]. Nos livros posteriores da Bíblia encontramos três vezes a palavra pardes com sentido de jardim (Ct 4, 13) e de parque (Ecl 2, 5 e Ne 2, 8). A literatura apocalíptica e o Talmud usam como jardim de Deus o sinônimo de Éden. O paraíso não recebe grande ênfase na visão judaica. É o lugar de delícias, jardim, ou parque, ou bosque. B) No NT se identifica com o céu, lugar em que os bemaventurados gozam da presença de Deus. Paraíso aparece três vezes nos textos do NT: Lc 23, 43; 2 Cor 12, 1-4 e Ap 2, 7. O melhor texto é o de Paulo aos de Corinto. Ele afirma que foi arrebatado ao paraíso [paradeison] que antes descreveu como sendo o terceiro céu (12, 2). Daí deduzimos que paraíso e céu, morada de Deus, eram a mesma coisa no pensamento cristão da época. Por isso o Apocalipse afirmará: ao vencedor darei a comer da árvore da vida que está no paraíso (2, 7). É a vida de Deus que, segundo o mito-parábola das árvores da ciência e da vida, fazia os mortais semelhantes a Deus (Gn 3, 22-23). Hoje usaríamos a palavra céu, a mais usada para definir a vida íntima com Deus. Jesus, com sua morte, transforma o seio de Abraão em Paraíso, ou melhor, lugar beatífico, estado de comunhão com Deus em Cristo.
PISTAS:
1) A festividade de Cristo Rei foi instituída por Pio XI pela preeminência da festa sobre o simples ensino. Daí que as festividades foram instituídas em períodos de heresia para venerar com maior frequência e firmeza algum mistério da fé. No nosso caso, diz o Papa, a heresia moderna é o laicismo, peste que infecciona a humana sociedade. Começou-se por negar o Império de Cristo sobre todas as gentes, negou-se à Igreja o direito de ensinar, de dar leis e de dirigir os povos conduzindo-os à eterna felicidade, para submetê-la à arbitrária permissão dos governantes e magistrados. Parece uma profecia do que está sucedendo na Europa atual que negou a sua origem cristã na nova Constituição programada. Um segundo motivo é a apatia e timidez dos bons que se abstêm de defender os direitos da Igreja; com isso, a força dos adversários cobra maior temeridade e audácia.
2) Na sua homilia no ano 2000, ano santo, o Papa J.Paulo II reafirmava a doutrina católica, declarando que Cristo é o alfa e ômega da criação e como verdadeiro Rei do Universo governa e renova tudo para poder entregá-lo ao Pai, assim renovado, de modo que Deus seja tudo em todos (1 Cor 15, 28). É o Paraíso final. Vivei, diz o papa, de modo que o mundo seja transformado pelo amor e para o louvor a Deus.
3) Como viver esse reino na terra? A realidade diária está longe do ideal diz o Papa. Todos estamos tentados a abandonarmos à rotina. Mas devemos realizar com esmero o trabalho, até o mais burocrático. Devemos olhar as pessoas, seus problemas e seus sofrimentos, embora tenhamos unicamente documentos nas mãos. Um discípulo de Cristo jamais deve se acomodar na mediocridade, pois todo trabalho pode ser caminho de santidade.
4) Do exposto anteriormente, vemos como a escolha estava entre o Imperium representado pelos imperadores, tendo como base os deuses de Roma, e o Reino de Cristo, em que este representava realmente o Imperium do Deus único. Ou era o Imperador, ou era Cristo. Por isso vemos como as palavras deste último se tornaram realidade: Sereis odiados por causa de meu nome (Mt 10, 22).
EXCURSUS: NORMAS DA INTERPRETAÇÃO EVANGÉLICA
- A interpretação deve ser fácil, tirada do que é o evangelho: boa nova.
- Os evangelhos são uma condescendência, um beneplácito, uma gratuidade, um amor misericordioso de Deus para com os homens. Presença amorosa e gratuita de Deus na vida humana.
- Jesus é a face do Deus misericordioso que busca o pecador, que o acolhe e que não se importa com a moralidade ou com a ética humana, mas quer mostrar sua condescendência e beneplácito, como os anjos cantavam e os pastores ouviram no dia de natal: é o Deus da eudokias, dos homens a quem ele quer bem e quer salvar, porque os ama.
Interpretação errada do evangelho:
- Um chamado à ética e à moral em que se pede ao homem mais que uma predisposição, uma série de qualidades para poder ser amado por Deus.
- Só os bons se salvam. Como se Deus não pudesse salvar a quem quiser (Fará destas pedras filhos de Abraão).
Consequências:
- O evangelho é um apelo para que o homem descubra a face misericordiosa de Deus [=Cristo] e se entregue de um modo confiante e total nos braços do Pai como filho que é amado.
- O olhar com a lente da ética, transforma o homem num escravo ou jornaleiro:aquele age pelo temor, este pelo prêmio.
- O olhar com a lente da misericórdia, transforma o homem num filho que atua pelo amor.
- O pai ama o filho independentemente deste se mostrar bom ou mau. Só porque ele é seu filho e deve amá-lo e cuidar dele.
- Só através desta ótica ou lente é que encontraremos nos evangelhos a mensagem do Pai e com ela a alegria da boa nova e a esperança de um feliz encontro definitivo. Porque sabemos que estamos na mira de um Pai que nos ama de modo infinito por cima de qualquer fragilidade humana.
Ambientação:
Sejam bem-vindos amados irmãos e irmãs! Na parábola deste domingo, as particularidades estão em função da mensagem; nem todos os elementos têm a mesma importância. O elemento que aqui unifica o quadro não é tanto o diálogo entre o senhor e os dois primeiros servidores, quanto o diálogo travado entre o servidor condenado por sua preguiça e o senhor que exige uma justificação. Risco ou Prudência? A prudência, para merecer este nome, requer também a previsão do risco. A razão adotada pelo servo preguiçoso parece à primeira vista, um raciocínio justo, um comportamento de quem se põe em segurança; é mais sensato conservar aquele pouco que se tem do que perdê-lo. A lógica so senhor da parábola é diferente. A salvação passa através do risco: o talento que o servidor recebeu não dá salvação por sí só; a quantidade dos talentos não pode constituir uma segurança, o dom tem que ser multiplicado. Quem não se arrisca não pode lucrar. A vinda do Senhor, imprevista para todos, não permite negociar com os dons recebidos. Não ousar pode parecer prudência, mas é finalmente uma prova de preguiça. Quem não traduz em obras o dom e o anúncio recebido e não sabe tirar vantagem do que recebeu é insensato, tolo e comodista. Entoemos cânticos jubilosos ao Senhor!
(coloque o cursor sobre os textos em azul abaixo para ler o trecho da Bíblia)
PRIMEIRA LEITURA (Pr 31,10-13.19-20.30-31): - "O encanto é enganador e a beleza é passageira; a mulher que teme ao Senhor, essa sim, merece louvor."
SALMO RESPONSORIAL 127(128): - "Felizes os que temem o Senhor e trilham seus caminhos!"
SEGUNDA LEITURA (1Ts 5,1-6): - "Todos vós sois filhos da luz e filhos do dia."
EVANGELHO (Mt 25,14-30): - "Porque a todo aquele que tem será dado mais, e terá em abundância, mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado."
Homilia do Diácono José da Cruz – 33º Domingo do Tempo Comum – Ano A
"LUCROS E PERDAS DA NOSSA FÉ"
No penúltimo domingo do tempo litúrgico do ano “A”, o evangelho nos coloca a parábola dos talentos, que poderá ser mal compreendida, se não aprofundarmos a reflexão, pois não estamos diante de um simples acerto de conta entre um patrão e seus servos, mas diante de algo muito mais sério que é a descoberta do sentido da nossa vida. A grande pergunta que estará em nosso coração e em nossa mente, quando esta vida estiver se esvaindo, é exatamente essa: Investimos a nossa existência em que? A vida vale à pena?
Na contabilidade há um demonstrativo em cada final de exercício, que mostra aos investidores e acionistas de que modo foi investido o capital por eles disponibilizado, esse balanço final mostra o Ativo e o Passivo, os ganhos e perdas da empresa, seus direitos e obrigações, seus valores a receber e suas contas a pagar, seu acréscimo patrimonial ou suas perdas, caso houver. Esta visão permite ao acionista decidir se continuará investindo ou se vai procurar outro negócio mais rentável.
Ora, Deus Pai investiu tudo em nós, o Filho pagou um alto preço, mais que todo o ouro, toda a prata e todas as fortunas que há no mundo, é um direito Dele portanto, querer saber no final de nossa vida, o que foi que fizemos com o nosso viver, com a sua graça, com a vida nova que tivemos acesso, com a obra da salvação.
Uma pessoa extremamente bondosa e amorosa para conosco nunca nos cobra nada, pois o seu amor é incondicional e gratuito, mas a gente se sente na obrigação de dar um retorno, que pode ser uma grande alegria, como a dos dois primeiros servos que duplicaram os talentos que lhes foram confiados, ou então será um momento de grande tensão e angústia, marcado pelo medo, por causa de uma relação distorcida com o Patrão. Podemos perceber que os outros dois não tiveram a preocupação de justificar o porquê aplicaram bem o talento recebido, pois independente do rigorismo e da exigência do Patrão, sentiram-se no dever de corresponder à confiança neles depositada.
Deus reconhece as nossas limitações, ele sabe muito bem que nem todos irão viver bem, descobrindo o sentido da vida e vivendo na essência do seu amor, e por isso, diante dele é válido todo e qualquer esforço de se viver segundo suas leis e sua santa palavra. Podemos até dizer, que o talento da é a própria existência visível aos nossos olhos, e que os talentos adquiridos com um bom investimento são as graças sobrenaturais que antecipam em nosso caminhar, esta vida nova que Jesus nos presenteou. Na hora certa, esta vida não nos será tirada, mas enriquecida com os demais talentos quando vivemos bem a nossa vida terrena, entendendo que ela é muito mais do que aquilo que se vê, São Paulo chama isso de caminhar na Fé.
Porém, aquele que se apegou a esta simples existência limitando-se a viver apenas na visão, alimentando sua esperança apenas com aquilo que esta vida terrena pode dar, este é o servo mau e preguiçoso, que investiu mal a sua vida, e que no balanço final da sua existência, já diante de Deus, irá constatar horrorizado, que não auferiu nenhum lucro, pois o que o que pensava ser um grande lucro, foi na verdade uma grande e terrível perda, e que terminou o seu exercício terreno com um saldo negativo, devendo algo para Deus.
Há uma música pastoral belíssima, cujo refrão diz “tudo vale a pena, quando a alma não é pequena!” Eis o grande segredo que o homem precisa descobrir: que o viver não se restringe aos limites da nossa materialidade, mas que o homem traz em si as sementes da eternidade, de uma Vida renovada pela qual vale a pena lutar para buscá-la e mantê-la a cada dia, porque os nossos horizontes são muito mais amplos do que nossos olhos podem vislumbrar, e esta descoberta prodigiosa que muda tudo em nossa vida só ocorre na vida de quem vive na Fé.
Ainda tomando o exemplo da Contabilidade empresarial, mês a mês se faz o balancete, que como o próprio nome diz, trata-se de um Balanço menor, que mostra os valores movimentados e ajudam o empresário a redirecionar seus investimentos, caso o resultado do balancete não seja bom, por isso esse evangelho nos convida também a um bom exame de consciência diante de Deus no sentido de saber com clareza e sinceridade, o que é que estamos fazendo da nossa vida, que são os talentos que Deus nos confiou, sempre é tempo de nos converter, de acertar as contas negativas e fazer novos investimentos na caridade, no amor, na solidariedade, com os lucros auferidos da Palavra de Deus e da força da Eucaristia.
A grande diferença da nossa vida de fé e de um controle contábil, é que o nosso Deus não é avarento nem egoísta, e o pouco que conseguirmos lucrar com a prática do amor cristão, já será suficiente para ouvirmos dele a palavra que o nosso coração anseia: “Porque foste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem participar da minha alegria!” Alegria que já experimentamos ainda nesta vida, quando colocamos todos os nossos talentos para servir os nossos irmãos, ajuntando um tesouro no céu.
José da Cruz é Diácono da
Paróquia Nossa
Senhora Consolata – Votorantim – SP
E-mail jotacruz3051@gmail.com
Homilia do Padre Françoá Rodrigues Costa – 33º Domingo do Tempo Comum – Ano A
“Espiritualidade do trabalho”
Aquele que recebeu cinco talentos e o que recebeu somente dois foram bons trabalhadores. Cada um deles, recebidos os talentos, “negociou com eles; fê-los produzir, e ganhou outros” (Mt 25,16). É preciso trabalhar! Mais ainda, é preciso trabalhar bem! João Paulo II, na sua Carta Encíclica sobre o trabalho humano (“Laborem exercens”), falava de “elementos para uma espiritualidade do trabalho”. No entanto, ninguém duvida que a primeira coisa para falarmos de uma espiritualidade do trabalho é que se tenha um trabalho e se trabalhe. É verdade que nem sempre é fácil ter um trabalho. Há muitas pessoas desempregadas. Nesse sentido, a justiça social apela aos representantes responsáveis pelo bem comum da sociedade que se empenhem em criar cada vez mais postos de trabalho.
Mas também é verdade que alguém poderia não trabalhar ou trabalhar mal simplesmente porque é um preguiçoso. Como vencer a preguiça? Trabalhando. Uma boa lição deixou aos filhos aquele camponês que estava prestes a morrer. Conta-se que os seus filhos eram bem comodistas e o pai, já moribundo, disse-lhes: ‘meus filhos, estou morrendo, mas vou deixar como herança um campo e um tesouro que se encontra neste mesmo campo; vocês só terão que procurá-lo cavando o terreno’. Morto o pai, começou a caça ao tesouro. Vão cavando, revolvendo o terreno e… nada. Depois de, literalmente, cavar todo o terreno não encontraram nenhum tesouro; só então entenderam qual era o tesouro que o pai lhes tinha deixado: o trabalho.
O trabalho é um dom de Deus, que criou o homem para que trabalhasse (cf. Gn 2,15). No nosso trabalho nós temos que fazer como aqueles servos que negociaram e fizeram com que os talentos se multiplicassem. Eles sabiam que eram administradores de bens que não lhes pertenciam. E nós, o que somos? Administradores, servos, trabalhadores na vinha do Senhor, negociantes com os talentos de Deus. O Senhor nos pedirá conta da nossa administração. Temos que trabalhar santificando a nossa profissão.
O primeiro requisito para santificar o próprio trabalho, agradando ao Senhor e fazendo do trabalho um ambiente de apostolado, é fazê-lo bem: pontualidade, responsabilidade, honestidade, prudência, solidariedade etc. Essas e outras virtudes formam o cortejo das virtudes do trabalhador. Um cristão que deseja ser santo, mas desenvolve mal o seu trabalho pode vir a ser um autêntico contra testemunha do Evangelho: reza, mas não trabalha bem; vai à Missa, mas não é honesto nas relações de compra e venda; faz penitência, mas não pratica a pequena mortificação de chegar pontualmente ao trabalho; fala que todo mundo tem que ser bom, mas ele mesmo é não é justo com os seus funcionários… Mal serviço à evangelização! Ainda que participe de uns cinco grupos da paróquia, se não é bom trabalhador, bom pai de família e bom amigo dos seus amigos, não vai atrair para Deus, não estará se santificando, não estará vivendo uma boa espiritualidade.
É justamente em meio ao barulho do mundo, ao ruído das fábricas, à paciente leitura dos livros da faculdade, enfim, por ocasião dos diversos afazeres do cotidiano nós encontramos a Deus, ele nos espera em meio a essas coisas. Fugir dessa realidade é fugir do mundo real e seria, portanto, fugir do encontro com Deus. Nesse sentido, as palavras de S. Francisco de Sales são atuais para animar-nos a viver essa “espiritualidade do trabalho” da qual falava o grande João Paulo II: “a prática da devoção tem que atender à nossa saúde, às nossas ocupações e deveres particulares. Na verdade, Filotéia, seria porventura louvável se um bispo fosse viver tão solitário como um cartuxo? Se pessoas casadas pensassem tão pouco em juntar para si um pecúlio, como os capuchinhos? Se um operário frequentasse tanto a igreja como um religioso o coro? Se um religioso se entregasse tanto a obras de caridade como um bispo? Não seria ridícula tal devoção, extravagante e insuportável? Entretanto, é o que se nota muitas vezes, e o mundo, que não distingue nem sequer a devoção verdadeira da imprudência daqueles que a praticam desse modo excêntrico, censura e vitupera a devoção, sem nenhuma razão justa e real” (S. Francisco de Sales, Filotéia, 1,3).
Vamos continuar negociando com os nossos talentos. Há momentos nos quais precisamos ser fortalecidos para continuar com esse empenho firme e alegre: santificar a realidade profissional, a de todos os dias. Vamos fortalecer-nos na Missa dominical, e até diária se possível; na meditação diária da Palavra de Deus; na reza quotidiana do Terço; nas visitas ao Santíssimo. Todas essas práticas de piedade são como um “posto de combustível” aonde o carrinho da nossa alma vai se reabastecer para continuar caminhando, encontrando e amando a Deus, conversando com ele em todos os momentos da nossa jornada.
Pe. Françoá Rodrigues Figueiredo Costa
Comentário Exegético – 33º Domingo do Tempo Comum – Ano A
(Extraído do site Presbíteros - Elaborado pelo Pe. Ignácio, dos padres escolápios)
EPÍSTOLA (1Ts 5, 1-6) - 0 DIA DO SENHOR
A afirmação da proximidade da Parousia nos leva facilmente a pensar na sua urgência e em consequência à possibilidade de calcular exatamente o momento preciso da mesma. Paulo resolve a questão em nível de princípios: o momento não pode ser conhecido. O importante é viver como filhos da luz, de modo que é indiferente o momento no qual a gente é chamada a dar conta dos seus atos. Os cristãos nada têm a temer porque vivem na luz do evangelho e não na escuridão da infidelidade. Deus não quer que ninguém pereça; e Cristo morreu para que vivamos como filhos de Deus no caminho da salvação. Porém é necessário se manter vigilantes e sóbrios para ressistir à carne e ao demônio.
O DIA DO SENHOR: Porém, acerca dos tempos e das circunstâncias correspondentes, irmãos, não tendes necessidade de que vos escrevamos (1). Porque vós mesmos, de modo certo, conheceis que o dia do Senhor virá assim como ladrão, de noite (2). De tempóribus autem et moméntis, fratres, non indigétis ut scribámus vobis; ipsi enim diligénter scitis quia dies Dómini, sicut fur in nocte, ita véniet. sicut fur in nocte, ita véniet.
DOS TEMPOS [kaipön<5550>=de temporibus]. O plural indica que não existe um tempo único, mas uma série de eventos, ou um tempo prolongado, como vemos em At 1, 7: Não vos pertence saber os tempos ou as estações que o Pai estabeleceu pelo seu próprio poder. A palavra tempo está seguida por CIRCUNSTÂNCIAS [kairön<2540> =momentis]. Kairos é um momento, um período de tempo, um tempo favorável, uma oportunidade, um tempo determinado ou fixo, os últimos tempos. Pelo que corresponde as circunstâncias podemos citar Mt 24:45: Quem é, pois, o servo fiel e prudente, que o seu senhor constituiu sobre a sua casa, para dar o sustento a seu tempo? Ou como diz Lc 20, 10: Quando chegou a época das vindimas, mandou um criado aos camponeses para pagarem a sua parte do fruto. Como vemos pelos textos citados, podemos substituir tempo por época ou circunstância. E Paulo diz que não tem necessidade de lhes escrever, pois todos sabem que não existe uma data fixa. DIA DO SENHOR: É uma expressão tomada dos profetas do AT que o chamam de yom appou [=ëmera orgës autou=dies furoris sui=dia de sua ira] (Lm 2,1). Também lemos em Is 13:8: Eles estão desmoralizados, apanhados pelo terror e pela angústia. Torcem-se como a mulher que dá à luz. Olham uns para os outros aterrados, com os rostos da cor do fogo e 9: Eis que vem o dia do SENHOR, horrendo, com furor e ira ardente, para por a terra em assolação, e dela destruir os pecadores. Como vemos o dia do Senhor não é necessariamente o dia final de um novo céu e uma nova terra. É o dia do juízo sobre uma nação, como Babilônia, referida no texto anterior de Isaías, e na qual a intervenção divina castiga o pecado. Textos do NT: Temos em At 2, 20: O sol se converterá em trevas. E a lua em sangue, antes de chegar o grande e glorioso dia do Senhor. Pedro cita aqui uma profecia de Joel 2, 2-3 em que O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e terrível dia do SENHOR [yom Yahveh=ëmera Kiriou=dies Domini]. Como vemos, esse dia não é o final dos tempos, senão o final de uma época determinada, que pode ser o dia de Pentecostes em Atos, acima citado, ou o dia da destruição de Jerusalém, na tradição paulina. Os elementos apocalipticos são tomados dos que precederam à epifania do Sinai, para indicar que realmente todos poderiam ver a presença real de Deus e de sua ira. Para Paulo, falando do incestuoso, parece que o dia do Senhor é o dia da morte, pois escreve em 1 Cor 5, 5: Seja entregue a Satanás para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus.
REPENTINO: Quando disserem: paz e segurança então lhes sobrevirão repentina destruição como dores de parto havidas no ventre e de modo algum escaparão (3). Cum enim díxerint: Pax et secúritas, tunc repentínus eis supervéniet intéritus, sicut dolor in útero habénti, et non effúgie.
PAZ E SEGURANÇA [eirënë<1515> asfaleia<803> = pax, securitas]. Paulo quer dar a sensação de que no momento menos pensado, quando tudo parece estar tranquilo, virá o dia da ira do Senhor. Dia que será um dia de aflição e angústia, pelas calamidades sobre determinados habitantes e num definido tempo com suas correspondentes circunstâncias: será quando menos se espera. Assim lemos em Lc 17, 27-29, sobre como viria a chegada do Reino de Deus: Comiam, bebiam, casavam, e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e veio o dilúvio, e os consumiu a todos. Como também da mesma maneira aconteceu nos dias de Ló: Comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam e edificavam. Mas no dia em que Ló saiu de Sodoma choveu do céu fogo e enxofre, e os consumiu a todos. Por este exemplo de Lucas podemos afirmar que não necessariamente Paulo fala da escatologia final nesta carta, mas pode se referir a um outro evento que determinará uma nova era ou época para o cristianismo nascente, que Jesus declarava ser a vinda do Reino de Deus. Podemos interpretar suas palavras como o fim de Jerusalém e do templo, significando Nova Era em que Jesus seria o Cristo, o Messias, reconhecido como tal pela humanidade. E isso é fato histórico irrefutável. Que para Paulo essa vitória esmagadora de Cristo com o final de todos os tempos é provável, pela falta de orientação cronológica de toda profecia que é descrita como imediata pela visão do profeta no momento de sua revelação. REPENTINA DESTRUIÇÃO [aifnidios<160>olethros <3639>=repentinus interitus] No capítulo 21, Lucas [não esqueçamos que foi o escritor do evangelho de Paulo] escreve estas palavras: Os asseguro que não passará esta geração antes de que suceda todo isso (32). Para dar na continuação, estas advertências: Cuidado de que os vossos corações não se embotem pelo vício, embriaguez e as preocupações da vida, e de repente caia de improviso sobre vocês este dia (34). E segundo o evangelista Jesus afirma desse tempo como sendo uma época de horror: Homens desmaiando de terror, na expectação das coisas que sobrevirão ao mundo; porquanto as virtudes do céu serão abaladas (21, 26). E termina Lucas advertindo: Vigiai, pois, em todo o tempo, orando, para que sejais dignos de evitar todas estas coisas que hão de acontecer, e de estar em pé diante do Filho do homem (36). Estar em pé como vencedores e não prostrados para serem pisados como vencidos (Sl 7,5). Segundo os exegetas modernos como o Pe. Manuel de Tuya, afirmam que em Marcos (cap 13) e Lucas (cap 17) não existe alusão ao final dos tempos no discurso escatológico de Jesus. Porém, Mateus aproveita o mesmo para declarar o juízo final no capítulo 25. O silêncio de João indica que a profecia de Jesus estava já cumprida na época da escrita de seu evangelho. Tudo confirma que tanto Lucas como Marcos escreveram cuidadosamente as palavras de Jesus e que Mateus, com esse seu espírito recopilador de catequista, escreveu o juízo final como uma apostila ao dia profético do Senhor sobre a destruição de Jerusalém. Terminemos, deixando falar o magistério eclesiástico no seu novo catecismo: 1) Haverá uma ressurreição de todos os mortos, justos e pecadores (At 24, 15). 2) Estes irão a um castigo eterno e os justos a uma vida eterna (Mt 25, 12+). 3) O juízo final evidenciará que a justiça de Deus triunfa sobre todas as injustiças e que seu amor é mais forte do que a morte (Catechesi tradendae 8,6). 4) Haverá, então, novos céus e nova terra (2 Pd 3, 13). 5) Porém, ignoramos o momento desta consumação dos tempos (ver números 1038 a 1050).
DORES DE PARTO: É uma expressão clássica, já dos tempos de Jeremias: Porventura não te tomarão as dores, como à mulher que está de parto? (13,21), ao declarar a ruína de Judá. No NT temos as palavras de Jesus na última cena que compara a tristeza dos apóstolos após a separação dEle com a da mulher, quando está para dar à luz: sente tristeza, porque é chegada a sua hora; mas, depois de ter dado à luz a criança, já não se lembra da aflição, pelo prazer de haver nascido um homem no mundo (Jo 16, 21). E será Paulo quem compara seus trabalhos para a conversão dos gálatas com o parto doloroso de uma mulher (Gl 4, 19). CONCLUSÃO: Unicamente sabemos uma coisa certa: que esse dia não poderá ser conhecido de antemão. Virá como ladrão na noite. Do resto, podemos dizer que é do gênero apocalíptico, exagerado e simbólico, para indicar a presença extraordinária do Criador ou do Senhor Jesus e chamar a atenção dos que escutam ou leem as palavras do texto.
FILHOS DA LUZ: Pois todos vós filhos de luz sois e filhos de (o) dia. Não somos d(a) noite nem d(a) escuridão (5). Omnes enim vos fílii lucis estis et fílii diéi: non sumus noctis neque tenebrárum. O apóstolo tem em mente a fé como uma luz no meio das trevas do paganismo e por isso chama de filhos da luz aos convertidos. Paulo segue diretamente as palavras de Jesus na festa das luzes: Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida (Jo 8,12). Dessas palavras se faz eco o apóstolo em Rm 13, 12-13: A noite é passada, e o dia é chegado. Rejeitemos, pois, as obras das trevas, e vistamo-nos das armas da luz. Andemos honestamente, como de dia; não em glutonarias, nem em bebedeiras, nem em desonestidades, nem em dissoluções, nem em contendas e inveja. Parece que a luz era símbolo comum entre os membros da primitiva Igreja, porque encontramos em 1 Jo 2, 8 a mesma ideia: Vos escrevo um mandamento novo, que é verdadeiro nele e em vós; porque vão passando as trevas, e já a verdadeira luz ilumina.
VIGILÂNCIA: Portanto, não durmamos como os demais, mas vigiemos e estejamos sóbrios (6). Igitur non dormiámus sicut et céteri, sed vigilémus et sóbrii simus. Paulo aqui insinua a vida despreocupada dos gregos e romanos que passavam a noite em banquetes e bebedeiras e durante o dia, dormiam na maior parte. Na parábola das dez virgens Jesus narra como tardando o noivo ficaram todas com sono e adormeceram (Mt 25, 5). Daí que recomende em 25:13 como moral da parábola: Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora em que o Filho do homem há de vir. Como colofão, citemos as palavras de Paulo na carta aos romanos, escrita alguns anos depois: E isto digo, conhecendo o tempo, que já é hora de despertarmos do sono; porque a nossa salvação está agora mais perto de nós do que quando aceitamos a fé. A noite é passada, e o dia é chegado. Rejeitemos, pois, as obras das trevas, e vistamo-nos das armas da luz. Andemos honestamente, como de dia; não em glutonarias, nem em bebedeiras, nem em desonestidades, nem em dissoluções, nem em contendas e inveja (Rm 13, 11-13). São palavras que servem de admoestação para todos os tempos e de modo especial para estes modernos, em que o bem-estar tem substituído a fé dos nossos ancestrais.
EVANGELHO (Mt 25, 14-30)- LUGAR PARALELO: Lc 12, 19-27
PARÁBOLA DOS TALENTOS
INTRODUÇÃO: À parte alguns dados significativos da parábola, que são alegóricos, a maioria dos outros são teologicamente nulos, ou sem significado, e refletem unicamente a cultura do tempo. Do contrário, poderíamos ressaltar da parábola, que Deus aprova juros e bancos e que visa o lucro como um empreendedor qualquer, dando uma palmada de aprovação a um capitalismo liberal e selvagem. Porém a intenção da parábola é completamente diferente e é essa intenção que deve conduzir nossa hermenêutica: Durante a ausência do Senhor [Jesus], os discípulos não podem permanecer de braços cruzados, mas devem exercitar seus talentos [qualidades] de modo a aumentar o número de discípulos, trabalhando para estender o Reino, como faria um mordomo que recebesse um capital de seu senhor. Quem cruzasse os braços, não estaria cumprindo a vontade do senhor, durante a ausência deste. Vamos agora pensar como pensavam os contemporâneos de Jesus, sabendo dos costumes e interpretando as mesmas com a ajuda da cultura atual.
A AUSÊNCIA: Pois do modo como um homem, deixando o país, chamou os seus escravos e entregou-lhes os seus bens (14). Sicut enim homo proficiscens vocavit servos suos et tradidit illis bona sua. A parábola começa com um homem apodëmön [que emigra ou se ausenta a um país longínquo]. Ele reparte sua fortuna entre três de seus escravos [doulos<1401>=servus]. A palavra doulos implicava uma dependência absoluta de outra pessoa: o dono. O escravo, nem sempre era tratado de modo bárbaro e, muitas vezes, era tratado de modo humano. Para um israelita, o período de escravidão estava limitado a 6 anos (Êx 21,2). Muitos dos escravos, no oriente próximo, eram prisioneiros de guerra, que eram separados em três partes: uma, como servidores do templo; outra, entregues aos líderes militares; e a maior parte, para o serviço do rei. Os súditos de um rei são seus escravos (Gn 21,25 e Êx 7, 28) e todos os que estão ao serviço do rei são seus escravos (Gn 40, 20), inclusive os seus oficiais (1 Sm 19, 1 e 2 Rs 22, 12). A palavra abed refere-se tanto a um servo de Deus (Dn 3, 93{26}) quanto a um servo de um rei humano (Dn 2,4;7). Já no início, Deus deu ao homem o poder de controlar o mundo [=domínio da terra], ou seja, de substituí-Lo, submetendo os animais (Gn 1,27-28), porque formou o homem à sua imagem e semelhança (Gn 1,26). Jesus formou seus discípulos também à sua imagem e semelhança: Quem vos ouve a mim ouve (Lc 10,16) de modo que devem anunciar os fatos de forma semelhante aos enviados pelo Batista: Deviam referir a João o que tinham visto e ouvido (Mt 11,4). Assim, os discípulos de Cristo foram constituídos em testemunhas (Lc 1,2). Por isso, durante a ausência de Jesus, eles devem continuar o trabalho do Mestre para expansão do Reino. Os talentos recebidos são a memória fiel do visto e ouvido.
A PARTILHA: Antes de partir por um longo período de tempo (19), repartiu seus bens entre três de seus servos. No tempo de Jesus a administração dos bens era coisa dos escravos, ou dos libertos. Os cidadãos livres sentir-se-iam humilhados em trabalhar como comerciantes ou artesãos. Durante essa longa ausência do senhor, a conduta dos servos foi diversa.
OS BENS: Uparchonta<5224>, que é traduzido na Vulgata como bona, plural de bonum são os bens, possessões ou riquezas. O motivo de dividi-las é provável que o dono não confiasse muito num único administrador. Caso a administração fosse um desastre, o dono só podia botar no xadrez o culpado e vender seus familiares como escravos.
A REPARTIÇÃO: Então, a um deu cinco talentos, mas a outro dois, e a outro, pois, um; a cada um segundo sua própria capacidade. E imediatamente foi ao estrangeiro (15). Et uni dedit quinque talenta alii autem duo alii vero unum unicuique secundum propriam virtutem et profectus est statim.
TALENTO <5997>: A palavra grega significava, originalmente, pratos de uma balança, até, finalmente, designar um peso determinado, que, nos tempos de Jesus, equivalia a 35 ou 45 Kg de prata, porque o ouro era tão escasso que não se computava com esse padrão, demasiado alto para o mesmo. O talento era uma medida de peso, a maior de todas. De modo que falar de talentos, em dinheiro, era sempre referido à prata. Para se ter uma ideia, a prata de um dólar tem um peso de 25 g. Era o valor do antigo duro espanhol. O talento, pois, equivalia a 1400 ou 1800 dólares de prata. É uma soma considerável de dinheiro. Na realidade, o peso básico entre os orientais era o siclo [shekel] equivalente a 10 ou 12 gramas de prata. Os valores mais altos eram a mina, equivalente a 50 siclos (Ez 45, 12) e o talento [kikkar] (Êx 28, 25-26) valendo 3 mil siclos. Portanto, um talento equivalia a 60 minas. Como moedas correntes, temos o denário ou dracma, e o didracma [dois dracmas], este último valendo a metade de um siclo. O denário [1/4 de siclo] era o salário de um dia. Logo um talento equivalia a 12 mil salários, ou seja, aproximadamente 32 anos de trabalho. Entre os romanos a moeda mais comum era o sextertius [sextércio], inicialmente de prata e logo de bronze, cujo valor era aproximadamente um quarto de denário, ou 2,5 asses. O salário médio da época [séc I e II dC] era de 700 ou 2 mil sextércios/ano; ou seja, meio denário a um pouco mais de um denário por dia. As fortunas médias de Roma se calculavam na base de 70 talentos.
CAPACIDADE: o grego fala de dynamis <1411>, força física no sentido geral e capacidade financeira no sentido de realizar empreendimentos monetários. Em Lucas 19, 13, serão dez os servos e cada um recebe uma mina [aproximadamente um ano de trabalho].
AS CONDUTAS DIVERSAS: Então, tendo saído, o que recebeu cinco talentos trabalhou com eles e fez [ganhou] outros cinco talentos (16). Do mesmo modo também, o dos dois, ganhou ele, igualmente, outros dois (17). Mas aquele que recebeu um, tendo-se afastado, cavou na terra e escondeu a prata do seu senhor (18). Abiit autem qui quinque talenta acceperat et operatus est in eis et lucratus est alia quinque. similiter qui duo acceperat lucratus est alia duo. Qui autem unum acceperat abiens fodit in terra et abscondit pecuniam domini sui.
AS DUAS PRIMEIRAS: Segundo a intenção da parábola, as duas condutas dos que receberam maior quantidade de bens do senhor foram idênticas; e as respostas do senhor, as mesmas para os dois. Conseguiram um lucro de 100% aumentando em dobro a quantidade recebida. Por isso as palavras do senhor foram igualmente laudatórias.
A TERCEIRA CONDUTA: O que recebeu um único talento o escondeu após cavar um buraco no chão. Era o costume da época em tempos de guerra em que os saqueadores eram frequentes e não existiam meios para guardar melhor os bens adquiridos.
O RETORNO: Então, após um grande [intervalo de] tempo, chega o senhor daqueles escravos e tem uma fala com eles (19). Post multum vero temporis venit dominus servorum illorum et posuit rationem cum eis. O presente histórico não é conservado na Vulgata, mas parece mais próprio da narração da parábola. Chega o dono e imediatamente chama os servos para saber o que foi feito com o dinheiro emprestado.
O PRIMEIRO: Assim, tendo se aproximado aquele que recebeu cinco talentos, apresentou outros cinco talentos, dizendo: Senhor, tu me deste cinco talentos. Vede, ganhei outros cinco talentos sobre eles (20). Diz-lhe o seu senhor: Ótimo, escravo bom e confiável, sobre poucas coisas foste fiel! Sobre muitas coisas te constituirei. Entra dentro do gozo do teu senhor (21). Et accedens qui quinque talenta acceperat obtulit alia quinque talenta dicens domine quinque talenta mihi tradidisti ecce alia quinque superlucratus sum. Ait illi dominus eius euge serve bone et fidelis quia super pauca fuisti fidelis supra multa te constituam intra in gaudium domini tui. Ótimo: É a tradução do grego Eu [=bom, bem feito] que a Vulgata traduz por euge como interjeição de aplauso e parabéns, que hoje traduziríamos por ótimo, perfeito, que também podemos usar em português como OK, aprovado, e que em latim tem o mesmo significado. Pistós <4193> significa confiável em quem se pode acreditar. Daí provém a palavra pístis fé, confiança. Foste fiel em poucas coisas [coisas pequenas] sobre muitas te constituirei administrador. Entra no gozo [chara <5479> grego e gaudium latino] de teu senhor. Como se dissesse: entra a formar parte dos validos que eu estimo com prazer como amigos. Podemos ver nesta expressão outra interpretação: Todo escravo [doulos] era alforriado quando admitido à mesa do dono e com ele comia. É possível que esta seja a melhor interpretação da frase que estudamos.
O SEGUNDO: Tendo, pois, se aproximado também o que tinha recebido os dois talentos disse: Senhor, dois talentos me entregaste; vede, ganhei outros dois talentos além deles (22). Diz-lhe o seu senhor: Ótimo, escravo bom e fiel! Sobre poucas coisas foste fiel; sobre muitas coisas te constituirei. Entra no gozo de teu senhor (23). Accessit autem et qui duo talenta acceperat et ait domine duo talenta tradidisti mihi ecce alia duo lucratus sum. Ait illi dominus eius euge serve bone et fidelis quia super pauca fuisti fidelis supra multa te constituam intra in gaudium domini tui. Os dois versículos deste segundo caso são exatamente cópia do primeiro, salvo o número de talentos e o personagem que com eles trabalhou. Em ambos os casos, o rédito é máximo: 100%.
O TERCEIRO: Tendo também se aproximado o que recebeu um único talento, disse: Senhor te conheço como um homem duro, ceifando onde não semeaste e recolhendo onde não espalhaste (24). E, temendo, tendo me afastado, ocultei o talento na terra. Eis, tens o teu (25). Respondendo, então, o seu Senhor disse-lhe: Escravo perverso e preguiçoso! Conhecias que ceifo onde não semeei e recolho onde não espalhei (26). Era justo, pois, que tu entregasses a minha prata aos cambistas e, chegando eu, receberia o meu com juros (27). And the one who received the one talent also coming up, he said, Lord, I knew you, that you are a hard man, reaping where you did not sow, and gathering where you did not scatter. And being afraid, going away, I hid your talent in the earth. Behold, you have yours. Respondens autem dominus eius dixit ei serve male et piger sciebas quia meto ubi non semino et congrego ubi non sparsi. Oportuit ergo te mittere pecuniam meam nummulariis et veniens ego recepissem utique quod meum est cum usura. Quando quem recebeu um único talento, o devolveu íntegro, disse: Senhor, conhecendo-te que és um homem inflexível [skleros <4642>, duro, exigente], que ceifas onde não semeaste e recolhes onde não espalhaste [as sementes]. Do ponto de vista das relações humanas, a desculpa do terceiro servo é insolente, se não politicamente descabida. Em vez de louvar, critica duramente atitudes negativas ou pouco recomendáveis do senhor. É uma justificação, por meio do medo, de sua preguiça e indolência. Sempre os pecadores, de todos os tempos, buscam a escusa que os aparta de culpabilidade. Adão se escuda em Eva e esta na serpente. E nosso homem, na inflexibilidade de seu senhor. Disse que foi este medo que o levou a uma conduta, que o amo censura como péssima e negligente; pois se sabia que o amo ia esperar dele frutos não semeados, por que não cuidou de entregar o dinheiro aos cambistas [trapezites <5133>=nummularii] para que na minha vinda o recebesse com usura [tokos <5110> grego e usura latina].
BANCOS E JUROS: Desde aproximadamente o ano 100 a. C. existiam os bancos. Na realidade, o banco era uma mesa, uma banca. Daí seu nome. Havia necessidade de troca de moedas, especialmente no templo. Daí os cambistas, que tinham como lugar de trabalho uma banca ou mesa. Ao que parece, eles cobravam preços excessivos e Jesus os comparou a verdadeiros ladrões (Mt 21,12 e Jo 2,14). Os banqueiros do tempo de Jesus também recebiam empréstimos, e investimentos, pagando juros sobre o dinheiro depositado a eles. Os juros dos empréstimos eram de 12 a 13 % se eram de emergência, e até 50% ao ano. Existiam também poupanças e faziam-se hipotecas e existiam cartas de crédito. Em Lv 25,36 lemos: Não aufiras [de teu irmão] nem juros, nem lucro; é assim que terás o temor de teu Deus e teu irmão poderá sobreviver a teu lado. O empréstimo com juros é permitido em Dt 23,21: A um estrangeiro farás empréstimo a juros; mas não a teu irmão. Em Pr 28, 8: Quem aumenta seus bens por juros e usura, acumula-os para os que têm pena dos indefesos [=ou seja, não lhe trarão proveito e voltarão para os necessitados]. Ez 18,8 descreve o homem justo como aquele que não empresta a juros e não pratica a usura, afasta a mão da injustiça e pratica um julgamento verdadeiro. Assim, os cambistas e os bancos deveriam ter sido a resposta e não o buraco no chão sem proveito nenhum para o senhor. Não era necessário, em semelhante situação, entregar o dinheiro a homens, nem ser enterrado na terra que o assegurava intacto. Logicamente Jesus não produz um juízo formal sobre a usura; mas o que interessava era a conduta do servo, reprovável como administrador da confiança do seu senhor. Logicamente ele é reprovado, por sua negligência em procurar ganhos certos com o capital recebido.
O PRÊMIO: Tomai, pois, dele o talento e dai àquele que tem os dez talentos (28). Pois a todo que tem, dar-se-á e estará em abundância; mas daquele que não tem até o que tem será tomado dele (29). Tollite itaque ab eo talentum et date ei qui habet decem talenta. Omni enim habenti dabitur et abundabit ei autem qui non habet et quod videtur habere auferetur ab eo. O receptor era o primeiro servo que tinha aumentado seu capital até dez talentos. E Jesus afirma a razão desta decisão com um provérbio, aparentemente comum, na época: Ao que tudo tem se lhe dará e terá em abundância; mas ao que não tem até o [pouco] que tem lhe será tirado. A vulgata traduz o que não tem do grego como: o que parece que tem [quod videtur habere] (29). É a mesma frase que Jesus disse anteriormente em Mt 13,12 respondendo a falta de resposta às parábolas do reino por parte dos seus ouvintes. Marcos 4, 25 traz a mesma afirmação de Jesus e no mesmo contexto. Lucas (8, 18) acrescenta o que parece que tem, que a vulgata traz como expressão particular no evangelho de hoje. Lucas como Mateus traz de novo a expressão em 19, 26 com motivo de uma parábola semelhante que tem como protagonista um rei e que 10 servos recebem, no lugar de talentos, cada um, uma mina para negociar. A mina era 1/60 de um talento, ou seja, 30 dólares de prata. O primeiro e segundo servos ganham 10 e 5 minas respectivamente e o terceiro a guarda embrulhada num lenço. A este também repudia o rei, terminando com a frase em questão: Pois vos digo que a todo o que tem dar-se-lhe-á; mas ao que não tem, o que tem, lhe será tirado. Evidentemente, no caso das duas parábolas, podemos interpretar a frase como estando materialmente correta com a atuação do amo ou do rei (Lc): ao que realmente tem, porque o ganhou, se dará mais e ao que não ganhou [não tem ganho] até o que tinha será tirado. No caso dos ouvintes, o que tinham era a eleição como povo escolhido, de modo que as palavras de Jahweh eram seu guia. Os que ouviram com atenção e deram fruto terão mais: o seu novo estado será mais perfeito que o anterior. Mas os que não quiseram ouvir até o que tinham como povo eleito, lhes será tirado. João em 15, 2 dirá que o sarmento que não produz fruto será cortado e o sarmento que produz fruto será podado para que produza mais fruto ainda. É neste sentido que devemos entender as últimas palavras de Jesus. Delas depende toda a interpretação da parábola. A parábola, justamente, ensina que não é só Jesus [evidentemente o amo ou rei], mas seus servos, apóstolos de modo especial, que têm o dever de trabalhar pela difusão do Reino. Chega a hora de render contas e logicamente os esforçados são remunerados, conforme suas obras, e os que nada fizeram, como o servo preguiçoso, serão condenados.
A CONDENAÇÃO: E ao escravo indolente lançai nas trevas de fora. Ali haverá pranto e ranger de dentes (30). Et inutilem servum eicite in tenebras exteriores illic erit fletus et stridor dentium. O servo que não trabalhou [achreios <888>=inútil dizem o latim e as traduções], que nada fez, recebe um castigo que já fora dado aos que não admitiram Jesus entre os que aparentemente eram os herdeiros do Reino, ou filhos de Israel, que serão lançados nas trevas, lá fora, onde haverá choro e ranger de dentes (Mt 8, 12). Lucas trará em 13, 28 o mesmo dito de Jesus sobre a rejeição dos judeus e a entrada dos gentios no Reino. O castigo da fornalha acesa está unido a esse choro e ranger de dentes tanto em Mt 13, 42 como em 13, 50, em ambos os casos indicando a sorte dos que cometem a iniquidade (13, 41) e os maus (13, 50). A essas trevas exteriores será lançado o conviva mal vestido (Mt 22, 13) onde haverá choro e ranger de dentes. É também Mateus em 24, 51 que diz que o choro e ranger de dentes forma parte da sorte dos hipócritas, com os quais comparte destino o servo mau. Finalmente, o servo inútil de hoje será lançado nas trevas, onde encontrará o choro e ranger de dentes (25, 30). Que significam estas frases, evidentemente, mais simbólicas que reais? Logicamente, fora, nas trevas, é uma expressão tomada do banquete em que fora, era noite escura (Mt 22, 13). Quanto aos judeus que ficarão nas trevas em Mt 8, 13 e Lc 13, 28 são trevas do entendimento ou do coração, como diriam os antigos, pois vendo não veem e ouvindo não ouvem (Mc 4, 12). O choro e o ranger de dentes em si mesmo, é, segundo o pensar dos judeus, próprio dos demônios no inferno, pois devido ao fracasso na revolta de Korah (Nm cap 16 e 17), na qual eles, os demônios, foram os bajuladores desses rebeldes e tiveram que recolhê-los no tumulto e indignação do inferno, onde os maus são um tormento como eram os carrascos no xadrez, segundo o Targum [paráfrase aramaica dos textos hebraicos], comentando Jó 3,17-18. Os comentários sobre o ranger de dentes, falam dos remorsos da consciência, torturas da mente, sentido de tribulação inexpressível, em que os malvados cairão, acompanhados pela raiva e o desespero. Ranger os dentes contra alguém como em Sl 35, 16 e At 7, 54 é o mesmo que se sentir estar cheio de ira e cólera, e por vezes de indignação e desprezo, como no caso de Davi em Sl 35, 16 e de Estêvão em At 7,54. É uma demonstração do ódio e aversão dos inimigos ou adversários, que estão como bestas selvagens dispostas a triturar os ossos dos quais buscam a ruína e destruição (ver comentário emPresbiteros.com.br exegese domingo XXVIII parágrafo Trevas, Choro e Ranger de Dentes).
PISTAS: 1) A parábola forma parte das advertências de Jesus para os seus discípulos de como se comportar durante a ausência do Mestre. A parábola aponta de modo especial ao momento de dar conta do trabalho feito como administrador de certa fortuna. O trabalhador que não fez nada é condenado a uma expulsão definitiva. Daí o lamento e o ranger de dentes, indicando ira (Jó 16, 9), raiva (Sl 112, 10), furor (Lm 2, 16), irritação (At 7, 54). É o desespero dos que foram totalmente afastados do gozo do Senhor, como são os hipócritas (Mt 24, 51).
2) Quando teremos esse ajuste? Se considerarmos que o ajuste é particular, será na hora da morte de cada um. Mas não podemos descartar um ajuste geral na hora da volta do amo: Seria o caso para essa geração do desastre dos anos 70 com a destruição do templo e da cidade.
3) Porém, pelo contexto que é apocalíptico, e sob a pergunta de Jesus de qual é o servo fiel e prudente de 24, 45, parece que o importante não é o tempo do ajuste mas a conduta dos servos que têm uma incumbência, e que seu dever é cumpri-la com todo o empenho possível e necessário.
4) A parábola é uma alegação indiscutível contra a postura protestante em que só a fé basta, e não existem méritos pessoais. O dono, que evidentemente representa Jesus, dá a cada servo laborioso um prêmio porque foram fiéis. E não duvida em premiar de modo especial o que mais tem, dando a ele o que foi retirado do servo preguiçoso. A tese evangélica de sola fides, solus Christus, sola gratia, [somente a fé, somente o Cristo, somente a graça] tira do homem comum qualquer mérito e o que é pior invalida da parte de Deus qualquer prêmio ou misthós [=salário], como lemos em grego, referente às condutas corretas. Como explicar, desse ponto de vista evangélico, a conduta do dono da parábola? E se completamos a parábola de Mateus com sua semelhante em Lucas (19, 12-27), veremos mais clara a incongruência do princípio fundamental protestante. Os dois primeiros servos recebem a recompensa devida às suas ganâncias: dez cidades correspondem a dez minas e cinco às cinco minas obtidas pelo segundo servo. Além da fé, Jesus exige um trabalho consciencioso com os dons recebidos e em proveito da comunidade, como Mateus anuncia, no que podemos chamar de consequência desta e da parábola das dez virgens.
Artigo Especial: Doutrina / Filosofia
Um breve apontamento sobre o conceito de dignidade da pessoa humana
"Sed dignitaten dicit principaliter retione formae"
São Boaventura
Prof. André Marcelo M. Soares, Ph.D.*
O conceito de dignidade é um dos mais relevantes para as reflexões ética, política e jurídica. Por esta razão, a sua definição filosófica é uma tarefa árdua. A dignidade não é algo que se aplica exclusivamente ao ser humano, mas, quando se fala em dignidade humana, é impossível deixar de lado o conceito de pessoa, que provoca uma variedade de questionamentos de ordem ontológica, antropológica e ética[1].
A expressão dignidade da pessoa é a combinação de dois substantivos, na qual a dignidade figura como termo valorativo aplicado a um sujeito que necessita se firmar como realidade ontológica (pessoa). Isto nos permite, de antemão, constatar que é possível refletir sobre o seu significado por dois caminhos: o ontológico e o ético. Através da via ontológica, pode-se conhecer uma realidade específica entre outras, que é a de ser pessoa. A via ética, por sua vez, permite pensar as razões alegadas para dizer que alguém é digno[2].
A origem etimológica da palavra pessoa encontra-se no termo grego prosôpon, que, longe de possuir um sentido ontológico, se referia à máscara que os atores utilizavam em suas representações teatrais. Apesar de Platão (cerca de 427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) aplicarem os conceitos de substância, natureza e essência, com seus respectivos matizes, ao homem, o pensamento grego desconhecia a realidade de ser pessoa. Ao longo dos anos, foi se desenvolvendo entre os gregos uma reflexão antropológica a partir de uma perspectiva cosmológica, segundo a qual o ser humano era compreendido como a realidade natural mais elevada[3]. Todavia, apesar de ser um animal racional, portador de logos e possuidor de uma alma intelectiva, não só vegetativa ou sensitiva como nos demais seres da natureza, nem os gregos e nem os romanos conseguiram perceber nele a realidade única, original, particular e concreta do ser pessoa.
É a perspectiva cosmológica grega que possibilitará a primeira abordagem da dignidade do homem, que, segundo Aristóteles, é mais evidente naqueles que desenvolvem de forma destacada a atividade intelectual própria da alma humana, como é o caso dos filósofos. Segundo as tradições platônica e aristotélica, a dignidade do homem seria proporcional a sua capacidade de pensar e conduzir a própria existência desde a razão.
No cristianismo, o conceito de pessoa teve um sentido teológico, por se aplicar primeiramente às pessoas divinas. A seguir, foi empregado para definir o ser humano, até então concebido simplesmente como homem[4]. Para o pensador franciscano Boaventura de Bagnoregio (1217-1274), era necessário ir além da definição do filósofo romano Boécio (480-524), para o qual a pessoa é "uma substância individual de natureza racional"[5]. De acordo com o Doctor Seraphicus, o conceito de relação parece definir com mais profundidade a pessoa, por se tratar de um elemento constitutivo essencial. Deste modo, a pessoa "define-se pela substância ou pela relação; se se define pela relação, a pessoa e a relação serão conceitos idênticos"[6]. Em outras palavras, na pessoa a relação não é simplesmente algo acidental, mas estrutural e, portanto, inerente a sua própria natureza[7].
A definição de Boécio, seguida por muitos outros filósofos, tem como núcleo o conceito aristotélico de ousia (ou substantia), utilizado fundamentalmente para definir as coisas naturais. Nesta concepção, a pessoa, tal como as demais coisas, é concebida como hypóstasis (ou suppositum), embora mais digna por ser dotada de razão. Para o Doctor Seraphicus, quando se trata das pessoas divinas, esta noção pode parecer estranha. Afinal, de forma alguma é possível interpretar as pessoas divinas como coisa. É por este motivo que ele utiliza o conceito de relação para referir-se, por analogia, à pessoa humana. O fato de o homem ser concebido como imago Dei significa que, além de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, está, desde a sua criação, relacionado com o seu criador.
Segundo Boaventura, "a pessoa é a expressão da dignidade e da nobreza da natureza racional. E esta nobreza não é uma coisa acidental, mas pertence à sua essência"[8]. Cada homem, em particular, foi criado por Deus não seguindo o modelo da natureza, mas unicamente o modelo da própria realidade divina[9]. É neste fato que repousa a dignidade humana.
A partir do século XVIII, sobretudo com a contribuição de Immanuel Kant (1724-1804), surgem novas perspectivas para fundamentar eticamente o conceito de dignidade. De acordo com Kant, a dignidade humana encontra-se na capacidade de autonomia, ou seja, no fato de ser o homem a única criatura capaz de se submeter livremente as leis morais que são reconhecidas como procedentes da razão prática[10]. Tal capacidade se deve ao fato do ser humano possuir, além de uma dimensão fenomênica, que o submete às leis físicas que regulam o universo e a ele mesmo, uma dimensão noumênica, que o torna um ser subjetivo, livre, constituído por uma interioridade e por uma consciência moral. Esta dimensão é a que lhe possibilita ser autônomo, isto é, um sujeito moral que reconhece o valor e a obrigatoriedade das normas que ele mesmo se impõe, sendo fiel ao imperativo categórico[11].
Para os pensadores da pós-modernidade, a dignidade humana nada tem a ver com os esquemas assinalados anteriormente. Nem as qualidades intelectuais (a razão), nem os pressupostos metafísicos (ontologia do ser humano) e nem a capacidade moral (autonomia) fundamentam a dignidade humana. Ela resultaria, portanto, de uma ação institucional segundo a qual determinadas sociedades, através do processo democrático, decidiriam de forma contingente e convencional (o único modo possível) o grau de sua utilidade ou eficácia para resolver conflitos sociais.
Segundo o neopragmatismo pós-moderno de Richard Rorty (1931-2007), os mecanismos da emotividade humana (especialmente a compaixão) explicam mais claramente como as abstrações racionalistas transformam em tendência social o reconhecimento de uma dignidade que converte em imoral o sofrimento desnecessário a quem se convencionou considerar como membro desta sociedade[12]. Os ingredientes básicos da perspectiva rortyana são: a contingência da dignidade humana, por um lado e o marco emotivista, onde se situa a raiz da defesa da dignidade, por outro.
Frente à racionalização do ser humano no pensamento grego clássico, à ontologização da pessoa na tradição cultural cristã e jusnaturalista e à autonomia do indivíduo na filosofia moderna germânica, o filósofo norte-americano Richard Rorty propõe um retorno ao pensamento de David Hume (1711-1776), segundo o qual os sentimentos e a utilidade social constituem o motor da ação moral e a base de qualquer direito humano[13].
Interpretando os diferentes modelos de dignidade, pode-se afirmar que o modelo grego clássico, o kantiano moderno e o neopragmático pós-moderno foram elaborados a partir de um tipo de reflexão denominada de fundamentação condicionada, considerando que a afirmação da dignidade humana depende do desenvolvimento e execução de determinadas qualidades intelectuais e morais da pessoa. No caso do neopragmatismo, os critérios escolhidos são os de utilidade social, conveniência e capacidade. Já a perspectiva ontológica, própria da tradição cristã e do jusnaturalismo, oferece uma fundamentação incondicionada, na qual a dignidade não depende de fatores externos ao ser humano, nem sequer do exercício de faculdades intelectuais ou morais, mais desenvolvidas nos adultos. Nesta perspectiva, a dignidade humana não está condicionada e não se sujeita às convenções jurídico-sociais.
* Prof. André Marcelo M. Soares, Ph.D. Filósofo, mestre e doutor em Teologia com pós-doutorado em Bioética pela PUC-Rio. É coordenador acadêmico e professor do curso de pós-graduação em Bioética da PUC-Rio, membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto Nacional do Câncer (INCA – Ministério da Saúde), membro da Comissão de Bioética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e membro da Equipe de Apoio da Seção Vida do Consejo Episcopal Latinoamericano (CELAM).
[1] Cf. ADORNO, R. Bioética y dignidad de la persona. Madrid: Tecnos, 1998.
[2] Cf. WOJTILA, K. Metafisica della persona. Milano: Edizioni Bompiani Il Pensiero Occidentale, 2003; MOUNIER, E. Il personalismo. Roma: Editrice AVE, 1999; VV.AA. Persona e personalismo. Aspetti filosofici e teologici. Padova: Gregoriana, 1992.
[3] Cf. FRAILE, G. Historia de la filosofia. Vol. I, Madrid: BAC, 1990, p. 370-381, 456, 464, 468-470, 487-504.
[4] Cf. JONES, D.A. The soul of the embryo: an enquiry into the status of the human embryo in the christian tradition. London/ New York: Continuum, 2004, p. 125-140.
[5] II Sent., d. 25, a. 2, q. 2 ad 4.
[6] MTr, q. 2, a. 2, n. 9. (V, 66s).
[7] Cf. MERINO, J.A. Historia de la filosofia franciscana. Madrid: BAC, 1993, p. 71.
[8] II Sent., d. 3, p. 1, a. 2, q. 2ad 1 (II, 107).
[9] Cf. RAPONI, S. Il tema dell'immagine-somiglianza nell'antropologia dei padri. Roma: Teresianum, 1981; RUIZ DE LA PEÑA, J.L. Immagine di Dio: antropologia teologica fondamentale. Roma: Borla, 1992; BÜHLER, P. Humain à l'image de Dieu. La théologie et lês sciences humaines face au problème de l'antropologie. Genève: Labor et Fides, 1989; ANDERSON, R. On being human. Essays in theological anthropology. Grand Rapids: Eerdmans, 1982.
[10] Cf. HIRSCHBERGER, J. Historia de la filosofia. Vol. II, Barcelona: Herder, 1956, p. 179-189.
[11] Cf. KANT, I. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins fontes, 2002, p. 33-35; HIRSCHBERGER, J. Historia de la filosofia. Vol. II, Barcelona: Herder, 1956, p. 172-174; PASCAL, G. O pensamento de Kant. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 108-126.
[12] Cf. RORTY, R. Contingency, irony and solidarity. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 59; RORTY, R. Derechos humanos, racionalidad y sentimentalidad. In: SHUTE, S; HURLEY, S. De los derechos humanos. Madrid: Trotta, 1998, p. 117-136.
[13] Cf. CORTINA, A.; MARTÍNEZ, E. Ética. São Paulo: Loyola, 2005, p. 66-68.
EXCURSUS: NORMAS DA INTERPRETAÇÃO EVANGÉLICA
- A interpretação deve ser fácil, tirada do que é o evangelho: boa nova.
- Os evangelhos são uma condescendência, um beneplácito, uma gratuidade, um amor misericordioso de Deus para com os homens. Presença amorosa e gratuita de Deus na vida humana.
- Jesus é a face do Deus misericordioso que busca o pecador, que o acolhe e que não se importa com a moralidade ou com a ética humana, mas quer mostrar sua condescendência e beneplácito, como os anjos cantavam e os pastores ouviram no dia de natal: é o Deus da eudokias, dos homens a quem ele quer bem e quer salvar, porque os ama.
Interpretação errada do evangelho:
- Um chamado à ética e à moral em que se pede ao homem mais que uma predisposição, uma série de qualidades para poder ser amado por Deus.
- Só os bons se salvam. Como se Deus não pudesse salvar a quem quiser (Fará destas pedras filhos de Abraão).
Consequências:
- O evangelho é um apelo para que o homem descubra a face misericordiosa de Deus [=Cristo] e se entregue de um modo confiante e total nos braços do Pai como filho que é amado.
- O olhar com a lente da ética, transforma o homem num escravo ou jornaleiro:aquele age pelo temor, este pelo prêmio.
- O olhar com a lente da misericórdia, transforma o homem num filho que atua pelo amor.
- O pai ama o filho independentemente deste se mostrar bom ou mau. Só porque ele é seu filho e deve amá-lo e cuidar dele.
- Só através desta ótica ou lente é que encontraremos nos evangelhos a mensagem do Pai e com ela a alegria da boa nova e a esperança de um feliz encontro definitivo. Porque sabemos que estamos na mira de um Pai que nos ama de modo infinito por cima de qualquer fragilidade humana.
CAMPANHA DA VELA VIRTUAL DO SANTUÁRIO DE APARECIDA
CLIQUE AQUI, acenda uma vela virtual, faça seu pedido e agradecimento a Nossa Senhora Aparecida pela sagrada intercessão em nossas vidas!
QUE DEUS ABENÇOE A TODOS NÓS!
Oh! meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno,
levai as almas todas para o céu e socorrei principalmente
as que mais precisarem!
Graças e louvores se dê a todo momento:
ao Santíssimo e Diviníssimo Sacramento!
Mensagem:
"O Senhor é meu pastor, nada me faltará!"
"O bem mais precioso que temos é o dia de hoje! Este é o dia que nos fez o Senhor Deus! Regozijemo-nos e alegremo-nos nele!".
( Salmos )
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