* por Tom Coelho
* Tom Coelho, com formação em Economia
pela FEA/USP, Publicidade pela ESPM/SP, especialização
em Marketing pela MMS/SP e em Qualidade de Vida no Trabalho pela FIA-FEA/USP,
é empresário, consultor, professor universitário,
escritor e palestrante. Diretor da Infinity Consulting e Diretor Estadual
do NJE/Ciesp. Contatos através do e-mail
atendimento@tomcoelho.com.br.
Visite:
www.tomcoelho.com.br.
“Tão grande é o defeito de confiar
em todos,
como o de não confiar em ninguém.”
(Sêneca)
Recordo-me de um tempo, em minha tenra infância,
em que me dirigia até um armazém na esquina de casa, a
pedido de minha mãe, para buscar pão e leite. Não
necessitava levar dinheiro ou um bilhete assinado. Bastava minha presença
para trazer o que fosse preciso. O acerto de contas era assunto a ser
tratado posteriormente. Coisa de adultos.
Quando chegava o verão, eu podia inclusive dar-me
ao luxo de passar pelo mesmo armazém e apanhar um refrescante
sorvete de palito. Claro que resguardados certos limites – levar
o time de futebol para compartilhar deste privilégio era atitude
passível de severa punição: a perda da confiança
de meus pais.
O dono do armazém consentia com este procedimento
porque tinha certeza de que meus pais pagariam a conta. Analogamente,
meus pais acreditavam que o valor apresentado como despesa seria justo
e correto, correspondendo exatamente ao que fora consumido.
Cresci compreendendo que aquela situação
representava uma espécie de contrato social, calcado na honra
e na palavra, ao que se convencionou chamar de “fio de bigode”.
E percebi que aquilo fazia parte de minha formação, de
minha cultura e de meu caráter. De tal forma que o empréstimo,
entre colegas, de livros, discos de vinil (sim, CD neste tempo eram
apenas a terceira e quarta letras do alfabeto) e até pequenas
importâncias em dinheiro, era selado pelo mero compromisso pessoal
da devolução em perfeito estado de conservação.
Anos mais tarde uma oportunidade de trabalho bateu
à minha porta. O destino era uma pequena cidade que contava,
na ocasião, pouco mais de 80 mil habitantes. Aconchegante, bem
estruturada, mas uma típica cidade interiorana.
Lá fiz amizade com um carioca, já radicado
no local há um par de anos, que sentenciou o que me aguardava.
Disse-me ele: “Aqui, você é mocinho até que
se prove o contrário. Nos grandes centros, de onde viemos, é
o oposto, ou seja, somos bandidos até que provemos o contrário”.
Dias depois pude vivenciar aquelas palavras. E lembrei-me daquele armazém
de minha infância.
As duas últimas décadas nos legaram abundância
de recursos, tecnologia sem precedentes, capacidade de comunicação
quase ilimitada. Migramos do racionamento para o delivery, do mundo
analógico para o digital, do telex para a videoconferência.
E do “fio de bigode” para o papel assinado.
Casamentos demandam acordos pré-nupciais, instituições
de ensino firmam contratos de prestação de serviços,
reuniões são registradas em livros de ata. Advogados grassam
aos milhares. Uns, para elaborar contratos; outros, para contestá-los.
Sem falar do magistrado que delibera qual dos dois será agraciado
com a razão.
O contrato social verbal está extinto. Vigoram
apenas os contratos políticos, econômicos e até
ecumênicos. Um mundo de contratos, impressos em cinco vias, com
duas testemunhas, registrados e com firmas reconhecidas. Um mundo burocrático
e cartorial onde uma pessoa conhecida por escrivão, dotada de
uma concessão denominada fé pública, tem o poder
discricionário de dizer se eu sou mesmo a pessoa que declaro
ser.
De tanto ouvir a assertiva “quem paga mal, paga
duas vezes”, passei a andar com um talão de recibo em minha
pasta. E arquivo comprovantes de pagamentos durante meses.
De tanto prestar serviços com remuneração
vinculada ao êxito, que quase sempre obtenho, sendo desdenhado
pelo cliente no recebimento de meus honorários – o mesmo
cliente que outrora, em dificuldades, faria qualquer coisa para reverter
sua situação – passei a solicitar-lhes uma assinatura
ao final de cláusulas e parágrafos. Ainda estou aprendendo
a fazer isso, posto que contrário à minha natureza. Mas
estou aprendendo...
Hoje, quando entro em uma padaria e me deparo com um
pequeno aviso anunciando “Fiado só amanhã”,
desperto para este novo mundo. Compreendo que a palavra “fiado”
advém de “confiado”, e que confiança é
algo que antes nascia com a gente, depois passou a ser virtude difícil
de ser conquistada e, agora, corre o risco de habitar apenas os dicionários
e romances dos séculos passados.
Acho que foi por conta disso que resolvi deixar o bigode
crescer e me mudei para o interior. Só para ser tratado como
mocinho e poder, por mais algum tempo, confiar e ser confiado.