* por Tom Coelho
* Tom Coelho, com formação em Economia
pela FEA/USP, Publicidade pela ESPM/SP, especialização
em Marketing pela MMS/SP e em Qualidade de Vida no Trabalho pela FIA-FEA/USP,
é empresário, consultor, professor universitário,
escritor e palestrante. Diretor da Infinity Consulting e Diretor Estadual
do NJE/Ciesp. Contatos através do e-mail
atendimento@tomcoelho.com.br.
Visite:
http://www.tomcoelho.com.br.
Cobaias
humanas são utilizadas em pesquisa sobre malária no Amapá.
Será que a ética e os princípios de beneficência,
não maleficência e justiça deixarão de vicejar
até no que diz respeito à vida?
Ética em Pesquisa
“Primum non Nocere.”
(“Primeiro não prejudicar.”, Hipócrates)
O caso veio a público no final do ano passado,
causando alarde e indignação. Uma pesquisa desenvolvida
em três comunidades ribeirinhas do Amapá: São Raimundo
do Pirativa, São João e Santo Antônio do Matapi,
denominada oficialmente "Heterogeneidade Vetorial e Malária
no Brasil", com intuito de estudar a dinâmica da transmissão
da malária e desenvolver estratégias para prevenção,
utilizou-se de cobaias humanos gerando um surto localizado da doença.
Coordenada pela Universidade da Flórida e financiada
pelo Instituto Nacional de Saúde dos EUA (NHI), com a parceria
da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da Universidade de
São Paulo (USP), da Fundação Nacional de Saúde
(Funasa) e da Secretária de Vigilância em Saúde
do Amapá, a pesquisa, em curso desde 2002, tinha por escopo a
captura do mosquito transmissor, durante nove noites consecutivas, em
jornadas de seis horas, duas vezes por ano. Por este trabalho, os membros
da comunidade recebiam uma “ajuda de custo” diária
de R$ 12,00, perfazendo um total de R$108,00, ou seja, um valor significativo
para famílias formadas em média por mais de dez pessoas
com renda mensal da ordem de R$300,00.
A questão é que o trabalho não
se resumia à atividade de captura. Cada um dos “voluntários”
tinha que se submeter à ação dos mosquitos em seus
braços e pernas. A meta era de 100 picadas por noite, em quatro
sessões de 25 picadas. Quem não cumprisse com sua cota
não recebia a diária.
O projeto foi previamente aprovado pelo Comitê
de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública
da USP, pelo Comitê de Ética do Centro de Pesquisas Aggeu
Magalhães, unidade da Fiocruz em Pernambuco, pelo Comitê
de Ética da Universidade da Flórida e pelo Conselho Nacional
de Ética em Pesquisa (CONEP), órgão subordinado
ao Ministério da Saúde. Detalhe: a tradução
do projeto de pesquisa do inglês para o português apresentada
pela entidade norte-americana aos parceiros no Brasil omitia a utilização
de “iscas humanas” bem como sua remuneração.
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) suspendeu a pesquisa em dezembro
de 2005.
Os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP)
são órgãos institucionais interdisciplinares e
independentes, constituídos por profissionais de ambos os sexos,
da área de saúde, ciências exatas, sociais e humanas,
além de pelo menos um membro da sociedade representando os usuários,
todos sem remuneração. Apresentam caráter consultivo,
deliberativo e educativo, com função de avaliar projetos
de pesquisa que envolvam a participação de seres humanos.
Criados com base na Resolução 196/96 do CNS e credenciados
pelo CONEP, devem defender os interesses dos indivíduos pesquisados
em sua integridade e dignidade e contribuir no desenvolvimento da pesquisa
dentro de padrões éticos.
A eticidade de uma pesquisa implica em quatro princípios
básicos:
a) autonomia: consentimento livre e esclarecido dos
indivíduos-alvo e a proteção a grupos vulneráveis
e aos legalmente incapazes;
b) beneficência: ponderação entre
riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais
ou coletivos, comprometendo-se com o máximo de benefícios
e o mínimo de danos e riscos. O Princípio da Beneficência
estabelece que devemos fazer o bem aos outros, independentemente de
desejá-lo ou não. O Dr. José Roberto Goldim distingue
acertadamente três conceitos: beneficência é fazer
o bem, benevolência é desejar o bem e benemerência
é merecer o bem;
c) não maleficência: obrigação
de não infligir dano intencional e garantia de que danos previsíveis
serão evitados;
d) justiça e eqüidade: relevância
social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da
pesquisa e minimização do ônus para os sujeitos
vulneráveis, não perdendo o sentido de sua destinação
sócio-humanitária.
Pessoalmente, tenho o prazer de integrar um dos 500
CEP instituídos em nosso país. Reunimo-nos mensalmente
para avaliar projetos apresentados por profissionais que têm,
muitas vezes, na arte de curar o seu ofício. Formamos um grupo
heterogêneo e sem compromisso com grupos ou entidades. Avaliamos,
discutimos, orientamos, aprovamos ou reprovamos um projeto. E atuamos
conscientes de que milhões de dólares da poderosa indústria
farmacêutica passam por nossas mãos, mas que acima de tudo
estão nossa consciência e a crença na virtuosidade
humana.
O Instituto Nacional de Saúde dos EUA colocou
US$ 1 milhão a serviço do tal projeto que acometeu pessoas
muito humildes residentes lá no extremo norte do país.
Quero acreditar que os princípios ainda vicejem sobre o capital,
que uma morte não seja considerada como apenas como mais uma
morte ou, ainda pior, como uma morte necessária. Enfim, que a
ética prevaleça sobre a política, que cartorialmente
é corrompida e ordena um “Cumpra-se” a despeito de
tudo e de todos.